Os rapazes e as moças se levantaram cedo no primeiro dia de reinado de Filomena. Assim aproveitaram o jardim, onde se divertiram e fizeram grinaldas com ramagens... Almoçaram ao ar livre e depois bailaram... Depois do repouso, após a hora nona (15:00), seguiram para o prado e se dispuseram ao redor da “rainha da jornada”... Filomena olhou com carinho a cada um dos membros do grupo e pediu que Neífile iniciasse a primeira narrativa.
A moça fez uma breve introdução dizendo que muitas vezes acontece de pessoas sem o menor escrúpulo criarem situações para enganar aos outros com a única intenção de gracejar... Não poucas vezes fazem isso ridicularizando os sentimentos mais sinceros dos demais... Ressaltou que em várias oportunidades elas acabam mal, e se tornam motivo de zombaria, atraindo para si cruéis e sinceras reações de ódio. Destacou ainda que sua narrativa seria de acordo com a proposta feita pela a rainha tão logo ainda havia sido indicada...
(...)
A história passava-se em
Treviso, localidade não tão distante de Florença... Lá vivia um alemão pobre
chamado Arrigo... Sua condição era tal que vivia a carregar o que lhe pedissem
em troca de algum dinheiro... Todos o consideravam um bom homem, “de vida limpa
e santa”... Assim viveu de modo bem simples... Aconteceu que no instante mesmo em
que este Arrigo morreu, os sinos da maior igreja da cidade passaram a badalar
sem que ninguém os tivesse tocado... Essa notícia espantou a todos que,
admirados, viram naquilo um sinal divino... Aos poucos os trevisanos começaram
a espalhar que, de fato, Arrigo era um santo.
Uma multidão o transportou de sua casa até a igreja
maior da cidade. E para lá acorreu toda a gente... Muitos doentes também
seguiram até onde instalaram o morto acreditando que só de tocá-lo poderiam ser
curados... Aleijados, cegos e coxos imaginaram que a sua cura fosse iminente
graças ao “santo defunto”.
Na cidade em polvorosa estavam três florentinos que viviam a visitar
cortes de ricos senhores para entretê-los, principalmente durante ocasiões em
que estes proporcionavam encontros festivos a outras famílias... Esses três
florentinos eram Stecchi, Martelino e Marchese, especialistas em fazer
imitações de outros tipos... E era divertindo plateias que ganhavam a vida.
Era a primeira vez que visitavam aquela cidade... Ficaram espantados com
toda aquela movimentação. Evidentemente ficaram curiosos e logo conheceram a
história do morto que todos tinham por santo... Deixaram os seus pertences na pensão
onde haviam se instalado com a intenção de também conhecerem mais de perto a
situação... Marchese alertou os amigos sobre a dificuldade que teriam de chegar
à igreja... Destacou a cidade estava cheia de alemães que chegavam
especialmente para homenagear o patrício... Havia homens armados instalados
especialmente por recomendação do “senhor daquelas terras” para que não
ocorressem confusões.
Foi Martelino quem teve a ideia de fingir que era um aleijado e,
acompanhado dos dois amigos, seguiria em meio ao povo com a intenção de tocar o
santo Arrigo... Marchese e Stecchi gostaram do plano... Contorcionista que era,
não foi difícil para Martelino entortar dedos, mãos, braços, pernas, a boca e o
rosto... Transformou-se de tal modo que podia ser considerado um tipo digno de
compaixão...
Os três seguiram para a igreja... Marchese e Stecchi carregavam
Martelino e iam abrindo o caminho entre a multidão... As pessoas viam que se
tratava de uma necessidade urgente... Acreditavam mesmo que o pobre coitado que
era levado precisava de um milagre, então davam passagem aos rapazes... De
fato, logo chegaram diante do corpo de Arrigo.
Outras pessoas, bons homens, ajudaram a colocar
Martelino em cima do santo. Todos ali o tinham por um doente de grave
moléstia... O fingidor (e isso Martelino sabia representar) demorou-se um pouco
até voltar a esticar todo o corpo... Todos os presentes acreditaram estar
presenciando o maior dos milagres, pois aquele que estava totalmente deformado
tornou-se reabilitado... Então seguiu-se um barulho ensurdecedor.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/07/decamerao-de-giovanni-boccaccio_17.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto