As reflexões de Henri acerca do depoimento de Peltov levou-o a certa angústia... É como se suas certezas em relação ao socialismo (enquanto alternativa para o estabelecimento da justiça entre os homens) tivessem sofrido um forte abalo... Ouviu a agitada discussão de Samazelle com Dubreuilh e, antes de se retirar, conseguiu sintetizar apenas que precisavam ter certeza de que as denúncias tinham um fundo de verdade...
(...)
Lambert e Samazelle seguiram com Henri... O primeiro disse que, em sua
opinião, Dubreuilh só podia mesmo estar vendido, pois, do contrário, não
pretenderia “abafar o caso”... Mas garantiu que dessa vez ele perderia a
discussão... Samazelle disse que seria difícil isso ocorrer porque “o comitê o
acompanha sempre”... Lambert disse que L’Espoir não tinha obrigação de obedecer
ao SRL. Samazelle riu e respondeu que
se tratava de uma questão mais grave, porém lembrou que se decidissem antecipar
as denúncias ninguém poderia impedi-los.
Henri perguntou se o outro
considerava que L’Espoir pudesse romper com o SRL... Para Samazelle, a ruptura era questão de uns dois meses, e
ele desejava que L’Espoir sobrevivesse ao mesmo tempo que imaginava a extinção do
SRL... O rapaz disse isso e
despediu-se...
(...)
Henri permaneceu com Lambert no cais e disse que
gostaria de saber dos propósitos de Samazelle... Lambert comentou que, se o que
ele desejava era o retorno de L’Espoir à independência, dava-lhe razão...
Lambert não se esquecia da morte do pai, que para ele tratava-se de
assassinato... Então, concluiu, era justo atacar os que se submetiam a Moscou
(que restabelecia a escravidão ao mesmo tempo em que fundamentava os bandos que
queriam fazer justiça com as próprias mãos ao perseguirem tipos como o senhor
Lambert).
Henri lembrou a Lambert a sua promessa de permanecer
fiel às convicções que os unira recentemente... O moço confirmou que assim
seria, porém acrescentou que, se Dubreuilh persistisse com as manobras para “abafar
o caso”, sairia do jornal e venderia suas cotas... Perron quis demovê-lo
daquelas ideias dizendo que aquilo dava no mesmo que concordar com as opiniões
preconcebidas do chefe... E devolveu aquele raciocínio afirmando que “deixar-se
convencer sem provas” também significa manifestar opinião preconcebida...
Lambert não se conformava com a possibilidade de Henri concluir como
totalmente inverídicas as informações e papéis apresentados por Peltov... Então
perguntou se ele concordava que, “em sendo verdade”, deviam proclamar as
denúncias... Evidentemente Henri respondeu que sim... O rapaz garantiu que
partiria para a Alemanha e que lograria êxito em sua tarefa, pois não perderia
tempo... Finalizou perguntando se gostaria que o deixasse em algum lugar...
(...)
Henri preferiu prosseguir caminhando... Poderia jantar com Paule...
Mas os depoimentos de Peltov não lhe saíam da cabeça... Aquilo havia
sido um tremendo golpe... E certamente alguma coisa do que o dissidente dissera
não era invenção... “Havia campos onde quinze milhões de trabalhadores estavam
reduzidos à condição de subhomens”.
Isso à parte, Henri levava em consideração que foram esses campos que
possibilitaram a derrota do nazismo... Persistia em seu pensamento a convicção
de que a URSS representava “a única chance de um bilhão de subhomens
deteriorando-se de fome na China e na Índia, a única chance de milhões de
trabalhadores votados a um estado inumano”...
Essas reflexões pressionavam a consciência de Henri, que nunca imaginara
a possibilidade de falha na via soviética... É claro que não era ingênuo a
ponto de acreditar que não houvesse nenhum abuso da URSS. Ainda assim
acreditava que “um dia o socialismo, o autêntico, aquele em que a justiça e a
liberdade se reconciliassem, acabasse por triunfar na URSS e pela URSS”.
O abalo dessas “certezas” significaria uma existência política sem
perspectivas... Ele mesmo constatava que a dúvida era-lhe um refúgio... Talvez
fosse por covardia que não se aprofundasse nas análises das evidências... Ele
que não se filiava ao comunismo, sofria por não posicionar-se “inteiramente a
favor ou inteiramente contra”...
Afinal, o que havia de melhor (ou de menos agressivo) a se oferecer aos
homens? Constatava o papel de relevância da URSS... Ou a revolução se faria por
ela ou não se faria... Entretanto pesavam-lhe na consciência os fatos de o país
ter substituído “um sistema de opressão por outro” e ter restabelecido a
escravidão... O mal está em toda parte? Se assim é, não há saída possível! “Nem
para a humanidade, nem para a gente”...
Henri sentou-se e “olhou estupidamente para a água que corria”.
(...)
É assim que a quinta parte de Os Mandarins chega ao fim... Em breve
retomaremos o enredo, cujo foco passa a ser Anne e sua estadia nos Estados
Unidos. Como sabemos, ela se deslocou para lá a fim de participar do Congresso
de Psicanálise.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/05/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-anne.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto