domingo, 30 de junho de 2013

“O Guarani”, de José de Alencar – os aventureiros comem e bebem após a prece; Loredano permaneceu em silêncio e foi assunto dos demais; Aires Gomes trouxe a notícia sobre a necessidade de prepararem-se para um provável ataque; há um acerto entre Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões; o inconformado Álvaro decide “entregar” o presente que trouxe para a amada; o italiano observa na escuridão; Peri está escondido em meio à folhagem

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Enquanto a noite se encerrava no casarão de d. Antônio, na instalação dos aventureiros ainda podiam ser ouvidas as vozes que tratavam da expedição... Trinta e seis estavam ao redor de uma grande mesa que não podia ser comparada à dos Mariz, porém há que se destacar que ali também havia fartura... Enquanto se refestelavam com carnes de caça, bebiam vinho de caju e de ananás... A embriaguez os animava, mas Loredano se destacava pelo silêncio...
E tanto chamou a atenção que os demais passaram a falar sobre ele em tom de chacota... O primeiro a provocá-lo foi Bento Simões. Na sequência foi Martim Vaz, que disse que aquela mudez só podia significar que o outro tinha algo a manifestar. Rui Soeiro disse que aquele comportamento só podia ser devido a alguma moça com a qual Loredano havia se encantado em São Sebastião (a cidade do Rio de Janeiro)... Vasco Afonso se intrometeu e deu a sua opinião sem concordar que Loredano fosse tipo que se amuasse por causa de moças as quais nenhum deles tinha acesso... Falavam sobre essas coisas enquanto o italiano se mantinha a pensar em silêncio. Como passaram a falar, rir e aplaudir as piadinhas que faziam sobre o seu olhar perdido, fizeram algazarra. E isso atraiu o escudeiro Aires Gomes, que chegou chamando-lhes a atenção e ordenando que dois dos aventureiros assumissem seus postos de sentinelas.
Foi Martim Vaz quem notou que o escudeiro estava mais sério que o de costume... Gomes explicou que era obediente às ordens, e todos entenderam que era d. Antônio quem recomendava mais atenção na guarda do lugar... Bento Simões brincou, dizendo que estava farto de ter de atirar apenas em pacas e porcos-do-mato. Vasco Afonso quis saber, então, qual era a ação que os esperava... O outro respondeu que os índios proporcionariam aquela “folia”.
Este assunto despertou Loredano, que quis saber se Martim Vaz pensava que aquilo poderia ocorrer de fato. Este não deu resposta, mas brincou com o fato de a conversa a respeito de tiros e mortes ter despertado aquele que até então estivera amuado... A seriedade de Aires Gomes fez com que os tipos fossem se retirando cada um para o seu canto... Loredano fez um sinal a Rui Soeiro e a Bento Simões, e os três seguiram para o meio do terreiro... Ali, em meio à escuridão, o italiano disse-lhes apenas uma palavra: “amanhã”! Evidentemente os outros dois entenderam a mensagem, já que o deixaram no mesmo instante e seguiram seus rumos.
Depois disso, Loredano dirigiu-se à beira do precipício. Dali podia observar o quarto de Cecília... A moça tinha acabado de falar com Álvaro e, como sabemos, estivera ali pensando em Peri e na possibilidade de o amigo ter morrido, mas isso durou um breve tempo, pois o avistou em seu retorno à cabana...
Sabemos que Peri chegava depois de dois dias de ausência... Devemos saber também o quanto ele se dedicava aos caprichos de sua senhora. Ele também sentia muita falta dela, e o seu desejo naquele momento era o de vê-la o quanto antes... Sem que ela soubesse, lá estava o índio saltando de um galho a outro... E foi com extrema agilidade que ele posicionou-se numa folhagem de árvore, tornando-se camuflado por ela... Dali ele conseguiu contemplar a doce Cecília a examinar as encomendas que haviam chegado do Rio de Janeiro... Peri notou a felicidade de sua querida amiga... Entristecido pensou que os agrados que podia proporcionar-lhe eram aqueles que a natureza exuberante oferecia... Havia trazido a onça viva...
O pretendente Álvaro só tinha pensamento para a filha de d. Antônio e não se conformava com o desprezo manifestado por ela. O moço tomou a decisão de colocar a lembrança que trouxe para ela em uma bolsa de seda. E resolveu que correria o risco de deixar o seu presente na janela de Cecília ainda naquela noite.
Então, enquanto Cecília recolhia-se para o descanso de seu sono, notamos esses três homens, cada um num ponto da mata, a focarem a “janela frouxamente iluminada” e a pensar unicamente nela. Sem dúvida, o intento de Álvaro era dos mais arriscados.
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Leia: O guarani. Editora Ática
Um abraço,
Prof.Gilberto 

sábado, 29 de junho de 2013

“Decamerão”, de Giovanni Boccaccio – Décima novela do primeiro dia – contada por Pampineia – a história da bela e jovem viúva e das amigas que resolveram troçar do bondoso e velho professor Alberto; é preciso ser prudente e refletir sobre os próprios procedimentos antes de julgarmos os outros; há pessoas que, em vez disso, preferem viver de aparências

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Depois da novela de Elisa, restou à própria “rainha do dia” a tarefa de fazer a última narrativa da “primeira jornada”... A novela que contaria, segundo ela mesma, deveria servir de lição às amigas de jornada... Para que não caíssem nos mesmos erros de certas mulheres... E também para que se guiassem sempre pela excelência dos costumes...
Antes da novela propriamente dita, Pampineia fez um prolongado discurso que teve início com considerações sobre a beleza das estrelas nas noites calmas; das flores que enfeitam os verdes prados durante a primavera... E relacionou esses panoramas às nobres frases que fazem parte dos “costumes louváveis e das palavras agradáveis”... Destacou que essas nobres frases são breves e combinam com os lábios das mulheres, mais do que com o dos homens... Sendo assim, aconselha-se (mais) às mulheres para que evitem falar em demasia e sem necessidade... Este mau hábito, de acordo com Pampineia, deve ser por elas evitado.
A “rainha do dia” prosseguiu e lamentou... Disse que os costumes estavam muito alterados... Destacou que poucas eram as mulheres ainda capazes de entender e responder às palavras de um galanteador... Em vez das belas, curtas e sábias frases, as mulheres procuravam se destacar (e assim chamar a atenção) por seus trajes multicoloridos e enfeites por todo o corpo... Davam a entender que era dessa forma que poderiam atrair atenção, elogios e homenagens... Pampineia foi dura em suas palavras, pois concluía que até um asno podia encontrar quem o enfeitasse... E um animal como o asno sustentaria bem mais ornamentos do que a mulher vaidosa e vazia de bons conceitos...
Para finalizar a sua introdução, Pampineia prosseguiu dizendo que as mulheres daquele tipo “tão enfeitadas, tão pintadas, tão cheia de cores” são como estátuas... Elas nada dizem e não têm sentimentos... Aliás, concluía, era preferível que se mantivessem caladas... Arrematou o seu discurso falando sobre as várias ocasiões de diálogo em que, nos galanteios, essas mulheres (e também certos homens) consideram-se em condições de surpreender e ruborizar o interlocutor com suas palavras... Mas Pampineia observou que a falta de precaução podia provocar “efeito contrário”.

Enfim, Pampineia começou a narração de sua novela...

A história passava-se em Bolonha, onde vivia o professor Alberto, um médico muito respeitado, já de avançada idade... Destaca-se que ainda era dotado de “calor natural”, e ele se via apto a nutrir as “chamas do amor”... Então aconteceu que durante uma festa Alberto conheceu a senhora Margaria dos Ghisolieri, uma linda e jovem viúva...
Definitivamente, o médico se encantou com ela... E de tal forma que, desde aquele primeiro encontro, não se conformava em passar um dia que fosse sem ver aquele “rosto formoso e delicado”... É por isso que passou a caminhar ou cavalgar diariamente em frente à residência daquela que “incendiara o seu coração”.
Margarida e outras damas, suas amigas, notaram a insistência do professor Alberto... E passaram a rir dele, já que consideravam ridículo um velho como ele se apaixonar daquela maneira... Achavam o seu comportamento inapropriado, e que “paixão de amor” era apenas para os jovens rapazes.
Numa ocasião Margarida acomodou-se em frente à própria casa junto com suas amigas... Ao longe elas notaram que o pretendente caminhava com os seus amigos e que em pouco tempo o grupo passaria por elas... As mulheres combinaram que iriam recebê-lo com homenagens diversas, mas na sequência iriam rir muito dele... Achavam mesmo que aquilo seria uma lição para o professor Alberto, que perceberia a situação ridícula que ele próprio proporcionava.
E foi isso mesmo o que se sucedeu... Convidaram os homens a um pátio agradável, onde havia várias sombras... Ali se serviram vinhos e doces enquanto conversavam animadamente... Por fim, as mulheres dirigiram-se ao doutor perguntando sobre como é que aquela paixão ousada era possível, já que todos sabiam que a formosa viúva “merecia amor de muitos moços”... Sem dúvida, a situação que se avizinhava era das mais embaraçadas para o nobre doutor.
O professor não titubeou e respeitosamente respondeu que o fato de ele amar não deveria ser motivo para que ninguém se espantasse... Disse que a senhora Margarida era digna de ser amada... E também que entendia perfeitamente o conceito que as pessoas fazem dos mais velhos, que são julgados fisicamente incapazes de ”exercitar o amor”...
Mas sobre essas considerações alheias, observou que todos deveriam levar em conta também que os mais velhos possuem mais experiência do que os moços, pois conhecem melhor a natureza...
Contou que estivera no local em que elas fizeram sua merenda e notou-as enquanto comiam tremoços e alho silvestre... Explicou que no caso do alho, o que há de mais aproveitável é a cabeça... Mas as senhoras (e Margarida inclusive), erroneamente de acordo com o seu entendimento, seguravam o alho pela cabeça enquanto comiam-lhe as folhas... Essas, além de nada valerem, têm péssimo sabor...
Ao terminar de dizer isso, o velho Alberto falou que amava a senhora Margarina sustentando alguma esperança. Pois bem poderia ser que ela escolhesse os seus namorados da mesma forma que procedia ao comer alho silvestre... E se assim fosse, naturalmente ele seria o escolhido dela.
A narrativa causou vergonha às mulheres que perceberam que, além de não terem bons modos, haviam cometido um erro contra aquele amável senhor... Margarida pediu desculpas e disse que ele havia dado uma bela lição a elas... E que havia feito isso de forma elegante... A mulher reconheceu que haviam sido atrevidas demais... Reconheceu que o amor de Alberto poderia fazer-lhe muito bem, e se dispôs a dar-lhe o prazer de permanecer em sua companhia... O professor agradeceu sorrindo... Despediu-se e foi embora com os amigos.
Para Pampineia, o descuido de Margarina ao não ponderar a respeito da pessoa com a qual pretendia fazer troça foi o motivo de sair-se vencida daquela situação... Então finalizou recomendando prudência às amigas.
Fim da décima novela.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/07/decamerao-de-giovanni-boccaccio-o-fim.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 28 de junho de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – o hábito, um “estigma”; por causa dele as pessoas evitavam Menocchio; Simon, o “judeu convertido”, e o diálogo que mantivera com o moleiro; interesse pelo “Alcorão”; a vida e suas angústias; os temas religiosos perseguiam Menocchio

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Dom Curzio Cellina sabia do hábito imposto pelo Santo Ofício Menocchio... E sabia também que o moleiro o usou por muito tempo, mas que estava disposto a solicitar às autoridades a dispensa daquele “estigma” porque o hábito se tornava um entrave... Por causa dele as pessoas o evitavam e pediam que se calasse quando falava da lua e das estrelas... O hábito tornava mais difícil conseguir algum contrato de trabalho...
(...)
Então, dado que Menocchio estava reduzido ao silêncio, não havia motivos para investigações? Parece que a constatação era a de que ele “não representava mais perigo para a fé dos seus concidadãos”... Tanto é que o Santo Ofício do Friuli, que tinha uma decisão de interroga-lo em janeiro de 1599, desistiu do procedimento.
(...)
Na mesma época em que Menocchio teve a sua conversa com Lunardo (e nós sabemos que este tratou de comunicar suas impressões a Gerolamo Asteo), aconteceu de o moleiro receber em sua casa um “judeu convertido” chamado Simon, que vivia de pedir esmolas... Por uma noite inteira os dois conversaram sobre temas religiosos... Menocchio destampou a falar mal dos padres que “viviam no ócio”, e que era por isso que escreveram os Evangelhos... Que Nossa Senhora havia tido dois filhos antes do nascimento de Jesus, e que era por isso que José não queria se casar com ela... E falaram sobre todos aqueles temas que Menocchio já havia conversado com o violinista Lunardo (“negação da divindade de Cristo; recusa do Evangelho; parasitismo do clero”...)...
Sabemos a respeito dessa conversa porque Simon falou sobre ela quando foi chamado a depor... E ele disse que Menocchio falara a respeito de um “livro lindíssimo”...  O convertido não viu o livro porque Menocchio já não o possuía, mas ele imaginou tratar-se do Alcorão.
Ginzburg destaca que o interesse de Menocchio e de outros heréticos pelo Alcorão talvez se explique pela recusa do dogma da Trindade... Sabemos que, de acordo com o Islã, Deus é único... De qualquer modo, não há como sustentar as palavras de Simon, que disse também que Menocchio sabia que morreria por causa de suas ideias heterodoxas... E garantiu que o outro só não fugia devido ao compromisso de seu compadre (Daniele de Biasio) de observá-lo de perto depois que o Santo Ofício comutou a sua condenação quinze anos antes... Em vez de “fugir para Genebra”, decidiu permanecer em Montereale... E se morresse, os “luteranos” buscariam as suas cinzas...
Questão de improvável solução seria descobrir quem seriam esses “luteranos” referidos por ele... Algum grupo clandestino? Alguém com quem conversara uma única vez no passado?
É provável que Menocchio sofresse... E que também imaginasse fantasias... Havia perdido a mulher e o filho Ziannuto, mortos... Simon revelou que o nosso personagem não vivia uma boa relação com os demais filhos, que o consideravam um estorvo...
Isso tudo à parte, Menocchio não tinha como se livrar dos apaixonantes temas religiosos... Eles não o deixavam... Restava-lhe permanecer... E aguardar o momento da chegada de seus perseguidores.
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – o violinista Lunardo de Simon escreve sobre suas impressões acerca das ideias de Menocchio; Asteo, novo inquisidor-geral do Friuli recolhe informações sobre o moleiro; notícias sobre o antigo pároco de Montereale; opiniões de Giovan Daniele Melchiori e de dom Curzio Cellina sobre o comportamento de Menocchio

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Aconteceu que no carnaval do ano anterior, Menocchio esteve em Udine, onde teve a oportunidade de conversar com um tipo que tocava violino e que já era um conhecido seu... Este era Lunardo de Simon, que também aproveitava as festividades para ganhar algum dinheiro tocando o seu instrumento... Ao saber sobre a “bula contra os heréticos”, Lunardo escreveu uma carta ao frade Gerolamo Asteo em que narrava o conteúdo da conversa que tivera com o “tocador de violão” na praça de Udine... Relatou que Menocchio deu a sua opinião negativa sobre história que corria acerca de opção de Lunardo em se tornar padre... Contou que Menocchio gozou da condição de pobreza a que ele se submeteria caso sua vocação se confirmasse e que ainda emendou dizendo que ninguém tem notícia de paradeiro de santos e eremitas, “ninguém sabe onde foram parar”...
A carta prosseguiu com citações que Lunardo Simon garantia ter ouvido de Menocchio... O “tocador de violão” dissera que “se fosse turco não ia querer se tornar cristão”; que “Deus é o pai de todo mundo e que pode fazer e desfazer”; que “turcos e judeus também acreditam, mas não que tenham nascido da Virgem Maria”... E ainda todas aquelas coisas referentes ao “fato de Jesus não ter descido da cruz” e “sobre padres e frades não terem o que fazer, e que inventam e escrevem certas coisas”... Obviamente Lunardo considerou Menocchio um tipo herético e perigoso.
Vemos que o nosso personagem voltou a falar e a defender suas antigas opiniões... Apesar de todo o processo, abjuração, cárcere e padecimento pelos quais passara, seu coração jamais renegara aquelas convicções...
A carta de Lunardo, por incrível que possa parecer, não gerou consequências imediatas... Apenas em 28 de outubro de 1598 é que os inquisidores, revisando papelada do Santo Ofício, começaram a relacionar os nomes Menocchio e Domenico Scandella... Gerolamo Asteo se tornou inquisidor-geral do Friuli e passou a recolher novas informações sobre Menocchio... E foi assim que ele ficou sabendo que Odorico Vorai, que no passado fizera a denúncia contra Menocchio e que resultou em sua prisão, havia sofrido perseguição implacável dos parentes do moleiro e sido expulso da pequena Montereale, onde era pároco... Asteo levantou em papéis (entre os quais, provavelmente, a antiga carta enviada pelo violinista Lunardo) a possibilidade de Menocchio ainda sustentar as mesmas falsas ideias do passado.
Asteo se dirigiu a Montereale e contatou o novo pároco Giovan Daniele Melchiori, de quem ouviu as notícias sobre Menocchio proceder contrariamente às disposições do Santo Ofício, ao não mais usar o hábito e ao retirar-se de Montereale com certa frequência... Nós bem sabemos que essa informação não era totalmente verdadeira... Isso à parte, em síntese, Melchiori respondeu que Menocchio se confessava e comungava, assim, tratava-se de “um cristão e um homem de bem”... O pároco nada sabia dizer sobre o que os demais habitantes pensavam dele e, por precaução, à frase “na minha opinião é um cristão e um homem de bem” acrescentou um “pelo que se pode ver exteriormente”.
O capelão de San Rocco, dom Curzio Cellina, que era escrivão da aldeia, confirmou que considerava Menocchio um homem de bem, pois o via “confessando e comungando”... Acrescentou que devia se observar que ele tinha “certos humores” quando observava “a lua, as estrelas, outros planetas” ou quando ouvia “trovão ou qualquer outra coisa”... Nessa ocasiões costumava dizer seu pensamento sobre o que aconteceu, mas na sequência citava a “opinião da maioria” como que a demonstrar que concordava que “todos sabem mais do que ele sozinho”... Cellina afirmou que acreditava, mesmo, que os “humores” de Menocchio não fossem coisas boas... Então só podia ser por temor que citava “os outros”...
Pelo menos na aldeia, Menocchio não ousava falar abertamente como no passado... Podemos mensurar a sua situação de isolamento... Na medida em que carregava o peso de sua condenação do passado, via-se sem condições, pelo menos em Montereale, de voltar a manifestar a sua “independência intelectual”... Cellina o via “conversando com muita gente”, então concluía que ele devia ser amigo de todos... O capelão de San Rocco não admitia que fosse amigo ou desafeto de Menocchio, apenas o tratava como os demais cristãos.
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Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – pena comutada, Menocchio retorna a Montereale; apesar de suas obrigações, retoma a vida em sociedade e torna-se “camarero” da igreja de Santa Maria de Montereale; Ziannuto morre e o moleiro teve de desempenhar outras atividades para sobreviver; o inquisidor de Udine o libera a sair da aldeia para trabalhar

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O bispo e o inquisidor avaliaram como “autêntica” a conversão do moleiro... O magistrado de Portogruaro e alguns nobres (entre os quais Giovan Francesco Palladio degli Olivi, futuro historiador da região) para que a sentença fosse comutada... Montereale, sua velha e conhecida aldeia, passou a ser o seu “cárcere perpétuo”, local de onde jamais poderia se afastar... Ali também estava proibido de falar sobre as “ideias nefastas”... Devia se confessar regularmente... O hábito com a cruz, sinal de seu passado herético, ser usado constantemente, ainda que por baixo da roupa. No caso de violar a sentença, 200 ducados deviam ser pagos... Daniele de Biasio, um amigo antigo, se responsabilizou por isso...
Tudo acertado, Menocchio pôde retornar a Montereale... Estava arrasado física e mentalmente.
Apesar de seu passado herético, ele conseguiu retomar boa posição na sociedade local... Odorico Vorai, que o havia denunciado ao Santo Ofício, já não era pároco do lugar... O novo pároco era Giovan Daniele Melchiori, que também tivera problemas com a inquisição... Sabemos que esse Melchiori era amigo de infância de Menocchio. Sem dúvida, ele colaborou para que o moleiro voltasse a uma vida regular... Em 1590 Menocchio foi nomeado “camarero” da igreja de Santa Maria de Montereale, o que equivalia à condição de administrador, cargo para o qual retornava.
Também é verdade que as igrejas tinham o costume de atribuir a moleiros o cargo de camareiro... É possível que isso se devesse ao fato de moleiros terem condições de adiantar dinheiro à paróquia... De sua parte, eles atrasavam o reembolso... Três anos após a posse de Menocchio na administração da igreja, o bispo de Concordia (Matteo Sanudo) realizou visita em que verificou que entre os devedores estava Scandella (200 liras)... Pode ser que o bispo nem se lembrasse desse nome e da condenação a que o submetera nove anos antes... Por ocasião dessa visitação em 1593, Sanudo recomendou mais cuidado com as contas da igreja... Os registros sobre os pagamentos e distribuição de grãos deveriam ser atualizados num “grande livro”... As maiores ameaças para o não cumprimento da obrigação estava na suspensão dos serviços divinos (a divinis) e o impedimento do “ingresso na igreja e de sepultura em caso de morte”... Ao que tudo indica os débitos foram devidamente resolvidos.
Menocchio prosseguiu sua vida, e pelo visto com a consideração da sociedade local... Tanto é que em 1595 ele foi chamado a representar um arrendatário numa questão litigiosa com o conde Giovan Francesco Montereale... Nesse mesmo ano ele conseguiu alugar, com o filho Stefano, outro moinho... Os dois se tornaram fiadores do antigo arrendatário, Florito di Benedetto... O moleiro ainda participou de representações políticas na localidade.
Mas o filho que mais o ajudava, Ziannuto, faleceu... Então Menocchio se viu na necessidade de desenvolver outras atividades para garantir o sustento... Entre essas atividades desempenhou a de professor de escola e de tocador de violão em festas... Devido a elas, percebeu-se na necessidade de se afastar de Montereale e também de se livrar do hábito que marcava a sua penitência.
Menocchio procurou o frade Giovan Battista da Perugia, o novo inquisidor em Udine, para obter a dispensa de suas obrigações... Em carta de 26 de janeiro de 1597 ao bispo de Concordia, da Perugia negou veementemente liberá-lo do uso do hábito, entretanto, em relação às atividades para o seu sustento, foi autorizado a praticá-las livremente... Apenas os “locais suspeitos” permaneceram-lhe vedados...
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quarta-feira, 26 de junho de 2013

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – a prisão em Concordia; depois de dois anos de cárcere, nova carta de súplica; o relato de Giovan Battista de’ Parvi e as impressões sobre um prisioneiro convertido; Menocchio e seu péssimo estado físico convencem as autoridades

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Por quase dois anos Menocchio permaneceu na prisão de Concordia... No início de 1586 (18/janeiro), seu filho Ziannuto apresentou um pedido de súplica em nome da família ao bispo Matteo Sanudo e ao inquisidor, o frade Evangelista... O documento, como não podia ser de outra maneira, era redigido pelo próprio Menocchio.
Seu texto ressalta que não se tratava da primeira vez que o pobre “Domenego Sacandella” se dirigia ao Santo Ofício pedindo súplica... Dessa vez, era a necessidade que o forçava a implorar. E garantia que, sendo atendido, cumpriria melhor a penitência pelos seus erros... Argumentou que já estava muito debilitado por tanto tempo de encarceramento (já fazia três anos que havia deixado sua casa devido ao processo e à condenação)... Seu sofrimento se tornara demasiado, também, por conta das precárias condições da prisão... A distância da família arrasava-o, e o empobrecimento de seus filhos obrigava-os a abandonarem o próprio pai... Arrependido, e sofrendo muito, Menocchio sintetizava a consequência de tamanho fardo: a morte certeira.
Pedia perdão a Deus e ao tribunal do qual esperava que o libertasse... Comprometia-se a viver “nos preceitos da Santa Igreja Romana” e a fazer as penitências impostas pelo Santo Ofício... Desejava, finalmente, que Deus concedesse felicidade às autoridades inquisitoriais.
O bispo de Concordia e o inquisidor do Friuli resolveram que Menocchio devia deixar a prisão... Ginzburg explica que dessa feita o prisioneiro havia sido auxiliado em seu texto por um advogado, diferentemente das ocasiões anteriores, quando redigira sozinho a própria defesa. Giovan Battista de’ Parvi era o carcereiro que teve de prestar informações a respeito do proponente...
Os relatos de Parvi dão conta de que a prisão era “forte e segura”, além de ser trancada “por três portas fortes e seguras”... Em toda Concordia não havia cárcere “mais forte ou mais rude” do que aquele... O carcereiro dizia isso como que querendo mostrar que cumpria exemplarmente sua função... Menocchio havia se retirado da fortaleza poucas vezes: por ocasião da abjuração (quando teve de dirigir-se à porta da catedral carregando uma vela); “no dia da sentença, no dia da feira de Santo Estevão, e também para ouvir missa e comungar”... Permanecia recluso e a Eucaristia era-lhe ministrada na prisão... Invariavelmente às sextas-feiras jejuava, e houve ocasião em que adoeceu tão gravemente (por causa dessa prática) que imaginaram que ele não sobrevivesse... Parvi emendou dizendo que Menocchio insistia em que não lhe trouxessem “carne ou outra coisa gorda” e, assim, alimentava-se só de pão durante algumas vigílias... Seu relato surpreendia muito ao garantir que pudera ouvir o prisioneiro rezando ou lendo o Officio dela Madonna em diversas ocasiões... E não era só isso... Informou que Menocchio havia solicitado uma imagem ao filho para que pudesse fazer suas orações...
O carcereiro apresentou um histórico positivo a respeito do prisioneiro... Falou que ele havia lhe dito que sua condição de sofrimento se devia aos pecados e erros contra Deus, e era a Ele a quem se dirigia, agradecendo por ter durado tanto tempo naquelas condições tão adversas. Então, para Parvi, Menocchio estava arrependido... Disse que ele se referia às suas ideias do passado como “loucuras” que as tentações do diabo incutiram em sua mente... O carcereiro finalizou com um “não se pode conhecer facilmente o coração dos homens; só Deus é que pode”.
Conduzido à presença do bispo e do inquisidor, Menocchio atirou-se de joelhos e pôs-se a chorar em súplicas... Disse que estava, de fato, arrependido de tudo o que havia dito e que havia sido objeto do processo; agradecia a Deus por tê-lo aliviado em suas orações... Lamentou que devido à situação precária de sua mulher e filhos não tivesse condições de expiar seus pecados e ofensas a Cristo pelo resto de sua vida na prisão.
O cárcere escuro, úmido e terroso acabara com sua saúde... Pernas e rosto incharam quando adoeceu, quase perdeu a audição e, enfraquecido, ficou como que “zureta” das ideias... O quadro sensibilizou as autoridades e o escrivão registrou em ata que (o prisioneiro) “realmente, enquanto dizia essas palavras, demonstrava na aparência e na própria realidade estar ensandecido, sem forças no corpo e seriamente adoentado”.
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Prof.Gilberto

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – a sentença; justificativa dos juízes; Menocchio representa perigo ao povo simples de Montereale; as heresias não eram “tão inéditas”; punição exemplar

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O moleiro entregou sua carta e os juízes se reuniram imediatamente para definir a sentença... Fizeram o réu reconhecer as contradições em que havia caído; desistiram de tentar convencê-lo sobre o “caminho certo”, e resolveram que ele deveria discorrer ainda sobre mais algumas questões como forma de montar o “quadro completo de suas aberrações”... Por unanimidade decidiram a sentença afirmando que Menocchio, além de herético formal, era um heresiarca (fundador de seita herética)... A sentença, promulgada a 17 de maio, foi muito maior do que as sentenças comuns de até então.
O Queijo e os Vermes cita vários trechos complicados contidos no documento elaborado pelo tribunal... Os termos em latim imputavam ao réu a condenação por ter falado sobre suas opiniões heréticas contra a fé católica, com o agravante de não ter se manifestado apenas aos religiosos, mas também às pessoas simples (non tantum cum religiosis viris, sede etian cum simplicibus et idiotis)... A sentença justificava que Menocchio era perigoso e, assim sendo, devia ser excluído da convivência dos camponeses e artesãos de Montereale...
Ginzburg reproduziu boa parte da exemplar sentença. Ela é tão significativa que perderíamos muito em não apresentar trechos selecionados. Os juízes expressaram toda a sua aversão às ideias e ousadia do moleiro, que só podiam ser obra de associação ao maligno:

(...) de tal forma obstinado nessas heresias; permaneceste com a alma insensível; negavas com atrevimento, ofendeste com palavras profanas e nefandas; afirmaste com espírito diabólico; não poupaste os santos jejuns; por acaso não vimos que ladraste também contra as santas palavras?; condenaste com teu julgamento profano; foi por influência do espírito maligno que ousaste afirmar; enfim tentaste com tua boca imunda; imaginaste essa coisa totalmente abominável; e para que nada permanecesse imaculado e que não fosse por ti contaminado (...) negavas; adulterando com tua língua maldita (...) dizias; enfim latias; colocaste o veneno; e o que é terrível que não só se diga mas se ouça; teu espírito mau e perverso não se contentou com essas coisas todas (...) mas levantou os seus cornos e, como os gigantes, te puseste a lutar contra a inefável Santíssima Trindade; o céu se espanta, tudo se conturba e estremecem os que ouvem as coisas tão desumanas e horríveis que com tua voz profana falaste de Jesus Cristo, filho de Deus.

O trecho da sentença apresenta as duras críticas contra Menocchio. Entretanto podemos dizer que há exagero em relação ao juízo de que as heresias por ele praticadas fossem “inéditas” para os inquisidores… Eles estavam acostumados a tratar dos mais diversos processos na região do Friuli contra luteranos, bruxas, benandanti, blasfemadores, anabatistas… As convicções do réu sobre as confissões diretas a Deus eram conhecidas dos seguidores da Reforma; as autoridades relacionaram a citação de Menocchio sobre o caos às ideias de “um antigo filósofo, não nomeado”; à máxima de Menocchio sobre Deus ser autor do Bem e de tudo o que é bom (e o diabo autor do mal), os inquisidores justificaram que ele retomava os princípios dos maniqueus; em relação à sua opinião de que todos se salvam (cristãos, judeus, turcos…), os religiosos afirmaram que o moleiro resgatava a heresia de Orígenes…
De modo implacável, o registro esmagava as esperanças de Menocchio em uma misericordiosa absolvição: “o que todos admitem e ninguém ousa negar, tu, a exemplo do tolo, ousaste dizer: ‘Deus não existe’ (…)”.
Ginzburg ressalta que algumas referências sobre as ideias dos maniqueus e de Orígenes podem ter sido lidas por Menocchio no Supplementum supplementi delle croniche (de Foresti), mas adverte que os religiosos exageraram ao considerar que aquelas doutrinas e fundamentos embasaram suas convicções…
Mais uma vez o autor destaca o “fosso” que separava a cultura do acusado da das autoridades…
Ao final vemos Menocchio condenado a abjurar em público a todas as suas ideias heréticas… Isso era fundamental para o seu “retorno à Igreja”, mas, além disso, teria de cumprir penitência encarcerado, usar um hábito marcado com a cruz “pelo resto da vida”… Sobreviveria às custas dos esforços de seus filhos.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_5031.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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