quinta-feira, 31 de outubro de 2013

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – um pouco sobre o Vercors e a resistência; os comensais falam de seus mortos; em Vassieux, paraquedistas alemães e incêndio; grande cemitério e mais narrativas; Anne passa mal e os amigos se retiram para longe da festa; “já que eram vivos, precisavam viver”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_30.html antes de ler esta postagem:

Sobre as montanhas do Vercors é bom que se saiba que se trata de uma bela região alpina (faz divisa com a Itália e a Suíça)... De fato, as localidades citadas em Os Mandarins foram palco de atuação da resistência francesa e do massacre que seus militantes sofreram de tropas nazistas (e também da milícia pró Vichy)...
Desde o início da ocupação alemã em 1940 os “maquisards” se reuniram na fronteira para resistir e realizar “pequenos combates” contra os invasores. Na véspera do desembarque aliado à Normandia (6/6/1944) os habitantes da região foram conclamados (inclusive por De Gaulle a partir da BBC) a se armarem para iniciar um levante que evidentemente tumultuaria a posição dos aliados de Hitler... O confronto no Vercors teve duração de aproximadamente um mês, resultou na vitória dos nazistas e morte de 840 patriotas (201 eram civis)...
Há o Parque com Memorial aos Heróis da Resistência no Vercors. Ele foi criado em 1970 e abriga o cemitério repleto de cruzes brancas dos mártires.
Esta postagem também é uma singela homenagem àqueles homens e mulheres que colocaram o ideal de liberdade para todos acima da própria existência... Decidi anexar essas duas imagens (retiradas hoje de http://en.wikipedia.org/wiki/Maquis_du_Vercors).


(...)

Estamos no ponto em que Anne, Henri e Robert resolveram permanecer na aldeia calcinada. Os soldados haviam prestado sua homenagem aos mortos locais e se retiraram, enquanto que o povaréu se ajeitou para comer e beber em memória dos parentes que se foram... Henri recordou-se dos enterros de sua infância no interior... Mas ali participavam de uma cerimônia com “centenas de viúvas, órfãos e pais enlutados”... O cenário se tornava mais degradante devido ao insuportável calor.
(...)
Um tipo passou uma garrafa de vinho a Henri e pediu-lhe que desse de beber à mulher dos tersóis. Explicou que se tratava da “viúva do enforcado de Saint-Denis”... Os comensais falavam dos seus mortos e sobre o marido da viúva. Eles queriam saber se se tratava do “enforcado pelos pés”... Não! O marido dela era um que não possuía olhos...
Perron entregou o copo de vinho à infeliz enquanto procurava saber a respeito da tragédia que se abatera sobre aquela gente... Então ouviu que cerca de quatrocentos paraquedistas alemães incendiaram Vassieux e causaram terror aos camponeses... A grande quantidade de mortos resultou naquela comoção e reconhecimento dos militares... Por isso Vassieux tinha “direito ao grande cemitério”...
Os tipos continuaram a falar de sua desgraça e a se conhecerem melhor... Não é difícil perceber que alguns mártires eram mais falados do que outros, e logo os seus parentes apareciam para relembrar os horrores... Falavam e bebiam vinho... “Em Saint-Roch, os alemães haviam encerrado na igreja homens e mulheres, na qual puseram fogo. Então permitiram que as mulheres saíssem; e houve duas que não tinham saído”.
Anne não suportou as narrativas, o calor e a terrível condição dos comensais... Tornou-se pálida e sentiu intolerável mal-estar estomacal. Retirou-se e foi seguida pelo marido. Não foi somente o vinho que lhe fizera mal, mas também o cansaço e o calor que enfrentavam... Decidiram procurar um local onde ela pudesse se recuperar...
Os três amigos pegaram as bicicletas e percorreram o suficiente para se afastarem dali... Enquanto pedalavam podiam ouvir “canções, risos, pequenos gritos excitados” que iam ficando para trás...
“O que podiam fazer senão beber, rir, excitar-se uns aos outros com cócegas? Já que eram vivos, precisavam viver”.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – Henri pretendia, através da leitura, obter uma formação para a ação política; no dia seguinte prosseguiram com as pedaladas e chegaram ao Vercors, região montanhosa atacada por alemães; o calor do dia e o cansaço os impedia de seguir pela estrada; celebração militar e homenagens aos mortos da localidade; luto, feridas, pão e vinho; Perron se recorda dos enterros da época de sua infância

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-para.html antes de ler esta postagem:

Mais do que “compreender o mundo”, Henri sentia que tinha a necessidade de “recriá-lo” com palavras... Em vez de um papel em branco, preferiu tirar de sua sacola “um livro já feito”.
Dubreuilh justificava que sua insistência (com o amigo) se devia à sua percepção de que em breve a juventude se sentiria mais atraída por livros elaborados pela direita (cita Volange)... Henri discordou dizendo que a juventude “não aprecia os vencidos”... A conversa se encerrou com o esclarecimento do rapaz, garantindo que ainda retornaria aos textos literários.
(...)
Os amigos tinham ainda mais três dias de passeios até que retornassem a Paris. A conversa com Robert fez Henri pensar sobre os estudos que iniciava... Seu plano era concluir, em um ou dois anos, uma síntese (um “embrião”) acerca de cultura política que lhe daria o embasamento teórico do qual sentia tanta falta.
(...)
No dia seguinte voltaram a pedalar, e Henri decidiu ficar para trás a pensar sobre o seu futuro... Era com sinceridade que esperava não reencontrar Paule (ela também havia se retirado por algum tempo de Paris)...
O dia estava bem quente e ao chegar a uma clareira notou uma cabana destruída por incêndio... A tristeza abateu-se sobreo rapaz... A ausência de ruídos de animais o intrigou... A rigor ele ouvia apenas o barulho que o pneu da bicicleta provocava no cascalho.
Anne e Robert estavam observando sete cruzes brancas... Perron os alcançou e viu que elas não apresentavam flores ou nomes. Estavam no Vercors, belíssima região montanhosa de “florestas transparentes”, muito quente e úmida. Dali, tiveram de andar a pé e empurrar as bicicletas. Enquanto caminhavam, pensavam que nem mesmo aquele lugar remoto escapou dos horrores da guerra... Anne anunciou o desfiladeiro e, sem dúvida, o novo trecho, apesar de pedregoso, apresentou-se mais confortável...
Notaram uma aldeia e surpreendeu-os o som de um clarim... Na estrada principal puderam ver caminhões e carros militares, além de carretas. Logo entenderam que se tratava de uma festa militar... Um deles disse que no hotel ouvira comentários alusivos ao evento. É certo que não gostariam de topar com aquilo, mas também não tinham como retornar à montanha.
Desceram e viram que a aldeia estava queimada. Num jardim havia cruzes ornamentadas com flores vermelhas... Uma banda acompanhava um desfile de soldados senegaleses... As pessoas se retiraram logo após os militares se recolherem aos caminhões. Elas vestiam preto, estavam de luto e haviam chegado de aldeias e povoados circunvizinhos.
Todos procuravam sombras de árvores ou se aproximavam das paredes queimadas para que pudessem se proteger do forte calor... Seus mortos haviam sido enterrados e homenageados com discursos e flores... Estavam prontos para se refestelar com vinho e pão...
Anne manifestou sua preocupação em ocupar algum lugar à sombra, pois os três estavam exaustos e a poeira esbranquiçada que subia atrás dos caminhões que seguiam para o vale não os animavam a seguir caminho... Eles viram que as pessoas se acomodavam numa grande mesa posicionada sob uma árvore... Umas empurravam às outras na disputa por um assento. Serviam-lhes basicamente purê de batata, carne mal assada, pão e vinho...
Eles também se acomodaram. Não sem esforço, Henri colocou-se à frente de Dubreuilh, ao lado de uma mulher com pesados véus... Os olhos dela estavam cheios de vermelhidão e tersóis que repeliam um excremento que caia no próprio prato. Algo medonho de se presenciar...
O silêncio dos presentes fez Henri lembrar-se dos enterros de seus tempos de criança no interior.
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – para Henri, os escritos de Robert apenas mostram que a literatura “tem algum sentido”, e isso é muito pouco; seu desencanto literário relaciona-se à consideração de que suas “historiazinhas pessoais” pouco contribuem para a necessária alteração da realidade; Dubreuilh não concorda com o amigo; o exemplo “das pequenas luzes refletidas na água”; discussão em torno da “literatura propagandística de direita”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir.html antes de ler esta postagem:

Perron quis saber das conclusões a que Dubreuilh havia chegado com o seu esforço ao escrever sobre cultura e a condição do intelectual... Foi com ironia que ele mesmo completou que os questionamentos do amigo serviam para indicar que “a literatura conserva um sentido”...
Robert percebeu o desprezo de Henri, mas não deixou de adverti-lo sobre a sua desistência literária e garantiu que não entendia por que ele havia abandonado o seu projeto... Sobre isso, Perron garantiu que o amigo tinha a sua parcela de culpa, pois ele havia feito a “apologia da ação”, e isso o levou a “perder o gosto da literatura”... Disse isso e pediu mais meia garrafa de cerveja ao garçom.
O assunto rendeu. Robert quis explicações... Henri disse que suas “historiazinhas” ou o seu pensamento pouco interessariam ao povo, que nada teria a ganhar com a publicação de um romance com esse tipo de registro... O moço garantiu que “a grande história não é assunto de romance”.
Robert ouviu as explicações de Perron e as rebateu, dizendo que todos possuem “historiazinhas” que não importam a ninguém... Mas argumentou que aqueles que “sabem contá-las” não devem abrir mão disso porque, escrevendo-as, contribuem para que os demais se enxerguem nelas... Assim, a literatura que Henri desprezava devia ser do interesse de todos.
Henri garantiu que pensava daquela maneira ao iniciar o seu livro. Mas desanimava-se com o fato de a experiência pessoal ser marcada (predominantemente) por “erros e miragens”. Disse isso enquanto bebericava e observava dois velhos que jogavam gamão na “paz que reinava no café”...
Como Robert insistia em entender a sua opinião, Henri deu o exemplo da sensação agradável que temos ao contemplar a beleza das pequenas luzes refletidas na água numa noite aprazível... A visão é bonita e nos contentamos com ela... Mas ao reconhecermos que aquelas são luzes que iluminam os bairros carentes, onde pessoas morrem de fome, a poesia se perde...
Henri levou em consideração que Robert poderia argumentar que isso não devia ser motivo para abandonar o livro, já que poderia escrever sobre os que morrem de fome... Então concluiu dizendo que essa temática ele dissertava em seus artigos para o jornal, ou discursava em um meeting.
Dubreuilh respondeu que as citadas luzes “brilham para todos”... Concordou que todos devem ter possibilidades de se alimentar... Mas acrescentou que a sobrevivência deve ter “enlevo”... Então não se pode simplesmente tirar das pessoas as “pequenas coisas” que a literatura tem condições de retratar.
Robert quis finalizar dizendo que se o procedimento a se adotar fosse com base nas conclusões pessimistas de Henri, sequer viajariam... Pois as paisagens seriam vistas (apenas) como ilusões que escondem as mais variadas injustiças... Henri disse que o momento que viviam demandava registros mais importantes...
Dubreuilh se irritou e desabafou dizendo que, daquela forma, a esquerda se condenaria a uma “literatura de propaganda”... O outro se defendeu dizendo que não se sentia afetado pela tendência aludida.
Para Robert Dubreuilh, Henri deveria demonstrar disposição para “outra coisa” (referia-se à produção literária)... Garantiu que o melhor para ele era “manter-se ocupado”. Referindo-se mais uma vez às “pequenas luzes” do exemplo utilizado por Henri, ele falou que é claro que não se pode chegar a elas apartando-se completamente de seus significados... Isso equivaleria a agir como os salafrários... Então sugeriu que Henri Perron encontrasse um modo de falar sobre as injustiças sem cair no “modelo” dos de direita... E advertiu que excluir as “experiências pessoais” das produções literárias equivaleria a “empobrecer o mundo”. E isso simplesmente não recolocava as coisas em seus devidos lugares.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_30.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto 

“Os Mandarins”, de Simone de Beauvoir – a bomba era uma clara demonstração de força; a Rússia comunista seria acuada?; Dubreuilh reflete sobre a divisão entre os socialistas na França do pós-guerra; as leituras de Henri levavam-no aos problemas enfrentados pelos miseráveis; perante aqueles problemas, o individualismo é uma “sujeira”; Robert explica sobre o que está escrevendo enquanto pedalam pelo interior francês

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-as_7.html antes de ler esta postagem:

Estamos no ponto em que Robert e Henri conversavam acerca do lançamento da bomba sobre Hiroshima... Também a respeito do peso que a guerra exercera sobre sua geração... Já que não havia como refletir sobre o desastre, quem seriam os culpados pelos prolongados anos de carnificina? O fato de os Estados Unidos possuírem a tecnologia deixaria a Rússia comunista acuada?
Dubreuilh entendia que o mundo se dividiria após aqueles acontecimentos... Lamentava, apesar de considerar os comunistas odiosos, a divisão que se processava no interior do movimento socialista na França... Não admitia a extinção do SRL (como desejavam os comunistas), mas considerava necessário manter a união, pois o PC francês era o “único grande partido proletário do país”.
(...)
Enquanto Dubreuilh debruçava-se sobre seus manuscritos, Henri decidiu ler...
Aliás, era isso mesmo o que vinha fazendo desde que interrompera a produção de seu “texto alegre”. Ele lia a respeito de diversos assuntos, e sempre chegava aos temas sociais... Havia lido sobre as “centenas de milhares de esfaimados” da China e da Índia. O rapaz refletiu sobre sua tendência em “tratar as pessoas como coisas”... Na França e Europa como um todo havia condição de vida satisfatória, autonomia e lucidez incomparáveis à situação dos miseráveis (de China e Índia)... Não era possível tratá-los como sujeitos em pé de igualdade em relação aos ocidentais...
Henri concluía que “o necessário é dar-lhes de comer”. Para ele, as expectativas não eram das melhores... Vislumbrando a hegemonia norte-americana no pós-guerra, concluía que aos miseráveis do oriente reservava-se a “subalimentação”... O rapaz considerava que a única saída para eles se livrarem da escravidão e do atraso seria a URSS... Assim, a potência comunista deveria ser apoiada.
Ele arrematava:
“Quando milhões de homens não passam de animais perdidos de necessidades, o humanismo é irrisório e o individualismo, uma sujeira.”
É claro que, intimamente, Henri pretendia uma condição existencial em que a pessoa pudesse viver como bem entendesse... Mas julgava que, no cenário que se avizinhava, isso seria impossível; então (continuou em suas reflexões) àqueles que estavam reduzidos a “coisas” a saída, talvez, fosse renunciar a liberdade e pertencer a um grande partido que expressasse a “vontade coletiva”...
O conflito intelectual produzido por essas reflexões era que ele próprio não podia “pensar naquilo em que não se pensa, querer o que não se quer”... Henri era um idealista, mas abominava o partido... E definia assim o seu “problema concreto”: “Sua adesão (ao partido) não proporcionaria um só grão de arroz a um único indivíduo hindu”.
(...)
Certa vez os três amigos almoçaram numa aldeia próxima a Aigoual... Uma intensa tempestade derrubou as bicicletas e acabou arrastando duas sacolas... Numa delas estavam os manuscritos de Robert, que recuperou-os em meio à lama... Ele teve a paciência de limpá-los, secá-los e reescrever os trechos que mais se danificaram...
Henri admirava o zelo do amigo em escrever, principalmente porque ele mesmo havia abdicado de seu projeto...
É evidente que Henri sentia falta daquele exercício... Num café de Valence, perguntou a Robert se podia ler o que havia produzido até então... Dubreuilh explicou que estava escrevendo sobre cultura, e que as questões giravam em torno dos motivos de alguns tipos falarem de si o tempo todo; ao passo que havia os que se consideravam porta-vozes dos demais... Seu problema consistia em apresentar reflexões sobre o intelectual... Afinal, ele é uma “espécie à parte” ao “falar em nome dos outros”? E a humanidade, “pode reconhecer-se na imagem que faz de si mesma”?
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 27 de outubro de 2013

“O Guarani”, de José de Alencar – o fim; tudo era água e céu; Peri narra a lenda de Tamandaré, seu povo e o dilúvio que se abateu sobre eles; no instante derradeiro, o goitacá lutou contra as águas e fez a palmeira flutuar; a árvore sumiu no horizonte levando Peri e Ceci

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A situação de Peri e Cecília se agravou rapidamente... A menina despertou no alto da palmeira e a visão que teve foi das mais impressionantes. O goitacá explicou o que estava ocorrendo... A devastação provocada pela violência das águas levava Cecília a concluir que, sem saída como estavam, restava-lhe pedir a Deus que morressem da mesma morte.
(...)
Ela disse a Peri que já podiam morrer. Mas ele se recusou a acatar àquela sentença e afirmou que não permitiria a morte de sua senhora... Serenamente, Cecília quis justificar e fazê-lo ver que as águas subiam cada vez mais. O goitacá respondeu que venceria as águas da mesma forma que vencera a todos os inimigos... O entendimento de Cecília era de que haviam sido vencidos pela torrente porque essa era a vontade de Deus...
Então Peri narrou uma história indígena a respeito de um grande dilúvio.
(...)
A seu modo explicou que em tempos remotíssimos ocorreu uma grande chuva que inundou toda a terra... Por causa dela todos subiram às montanhas para se salvar, mas Tamandaré (que era o mais forte entre os seus) decidiu permanecer com sua esposa na várzea...
Sobre esse Tamandaré (um “Noé indígena”), Peri destaca que Deus falava-lhe à noite o que, durante o dia, “ele ensinava aos filhos da tribo”.
Tamandaré teria recomendado aos demais que permanecessem na várzea como ele e a esposa. Mas ninguém quis ouvi-lo, pois estavam inquietos pela perturbação... Assim, enquanto o povo seguiu para as montanhas, ele e a esposa subiram no alto de uma palmeira, onde esperariam que as águas subissem e passassem.
De fato, terra, árvores e montanhas desapareceram... A palmeira onde se instalaram forneceu os frutos que os alimentavam durante os dias de dilúvio... A correnteza “cavou a terra” e arrancou a palmeira, que ficou a boiar acima das altitudes:
“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites...” O casal sobreviveu.
Peri encerrou a sua narrativa dizendo que depois de muitos dias de cessadas as tempestades, a água começou a baixar até que a palmeira voltou a fincar a várzea... Tamandaré viu o guanumbi (colibri), “desceu com sua companheira” e povoou a terra.
(...)
Cecília ouviu as palavras de seu amigo como se a alma dele se desprendesse de seu coração e se dirigisse diretamente ao coração dela.
Mas a água que enfrentavam já atingia a folhagem onde estavam acomodados. Gotas agressivas começaram a ensopar as vestes de Cecília... A menina clamou por Deus... Peri arranjou-se com os cipós e pôs-se a abalar a palmeira pretendendo fazer com que ela se desprendesse para que flutuasse como a do dilúvio da lenda...
Foi uma luta homérica, “luta terrível, espantosa, louca, esvairada”... Depois de esforço ”sobre-humano”, a árvore teve suas raízes arrancadas... O índio, que contava com seus músculos e o desejo de salvar a sua senhora, havia lutado contra as águas e a rigidez da planta entranhada... Peri quase se despedaçou, mas o resultado foi digno de ser classificado como obra de um milagre.
O goitacá cumpriu sua tarefa e retornou à cúpula da palmeira para junto de Cecília, que estava “quase inanimada”... Ele a abraçou e sentenciou-lhe que sobreviria... Muito atordoada, a menina respondeu que sim, viveriam, “lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!”
A menina completou:
“Sobre aquele azul que tu vês, Deus mora no seu trono, rodeado dos que O adoram. Nós iremos para lá, Peri! Tu viverás com tua irmã para sempre!”
(...)
Peri a acalentou, bafejando-lhe a face.
“A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte”.
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

“O Guarani”, de José de Alencar – Peri se instalou com Cecília no alto da palmeira; assistiram impotentes ao arrasto de destruição; o volume d’água continuou a subir, pois a tempestade era incessante na serra; Cecília orava e conformava-se com o fim

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Enquanto o leito se cobria da lâmina d’água, um “estampido terrível” troou ao fundo da floresta... A trovoada da região serrana reboava pela floresta.
(...)
Com a menina em seus braços, Peri utilizou os cipós para escalar a palmeira e atingir o seu cimo. No mais alto que pôde, acomodou-se com sua senhora. Ela despertou de seu sono sem entender o que se passava... Ele apontou para o horizonte e explicou que toda aquela água vinha de lá... No mesmo instante, uma grande torrente desceu sobre o rio e arrastou árvores e animais da floresta... Na sequência, várias outras torrentes se seguiram. Imensas rochas das montanhas eram carregadas (como se fossem pequenos e leves fragmentos) e provocavam estrago sem igual à paisagem milenar.
A água tornou-se agressiva demais e avançou pela mata... As árvores eram esmagadas e arrancadas pela força diluviana... O turbilhão buscava passagem para o oceano e, nisso, provocava devastação... Um espetáculo horripilante.
(...)
Cecília apoiou-se no ombro de Peri... Estava apavorada, mas não protestou...
O trecho de Alencar transmite a sensação:

“Em face desses transes solenes, desses grandes cataclismos da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto, que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emudece e paralisa”.

(...)
A tempestade prosseguiu na região das montanhas por toda a noite... Quando o sol despertou, sua luz esclareceu: tudo era água e céu:

“A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante a noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea”.

Então Peri e Cecília ficaram ilhados na cúpula da palmeira... Dali podiam observar que as altas montanhas ainda estavam envolvidas pelas nuvens escuras que continuavam a despejar a tempestade... As palmas, onde os dois estavam instalados, garantiam-lhes relativa segurança, pois a folhagem formava uma espécie de “berço mimoso”...
Mas as águas continuavam a subir. Elas faziam desaparecer as pequenas árvores... Cecília imaginava que pereceriam, enfim, da mesma morte. E é isso que restava pedir, pois, de tal modo estavam aninhados, que “uma só era a sua vida”...
(...)
A menina, que permanecera em oração, disse ao amigo que já podiam morrer.
                                            Na próxima postagem teremos a exposição do fim do romance. Até lá.
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Guarani”, de José de Alencar – o goitacá alertou sua senhora a respeito das incompatibilidades de sua decisão; a menina declarou sua convicção; com a aproximação da noite, Peri recuperou a canoa para que ela pudesse descansar; a cordilheira dos Órgãos estava envolvida em escuras nuvens e uma terrível tempestade atingia suas montanhas; Peri concluiu que o rio não daria conta de receber o estupendo volume de águas, então encostou a canoa e procurou proteção numa das árvores

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Cecília garantiu que ficaria com Peri na floresta, e que nunca o abandonaria... Ele perguntou se era verdade o que ela dizia... Ficaria mesmo ao seu lado, e para sempre? A menina repetiu que sim; ficaria, pois era “filha desta terra” e no seio da exuberante natureza também ela havia sido criada... Amava a terra e é por isso (também) que o mais correto a fazer era permanecer ao lado de Peri.
O goitacá deu a sua opinião... A fez pensar sobre certas incompatibilidades entre o seu modo de ser e a complexa realidade da floresta... Disse-lhe que suas delicadas mãos “foram feitas para flores e não para os espinhos”; seus “pés para brincar e não para andar”; o “corpo para a sombra e não para o sol e a chuva”...
Decidida, Cecília protestou (sempre com delicadeza e graciosidade) afirmando que era forte e que quando se cansasse ele a levaria nos braços, como acontece com a rolinha que “se apoia sobre a asa de seu companheiro”.
(...)
Jamais Peri havia imaginado uma vivência de tanta proximidade com a sua senhora... A determinação de Cecília o deixava feliz, mas estava decidido a cumprir o juramento que havia feito a d. Mariz.
(...)
Conforme a tarde avançou, ele procurou encontrar um local seguro onde Cecília pudesse passar a noite... Percorreu a margem do rio e viu que a canoa estava enroscada em parasitas. Decidiu puxá-la e forrar o seu fundo com folhas de palmeiras. Depois acomodou a menina no “berço” que se formou... Ela não quis que Peri remasse e sugeriu que deixassem a canoa seguir ao sabor da correnteza.
A embarcação começou a deslizar e Cecília brincou com as águas, flores e peixes... Peri seguia distraído, mas olhava atentamente para as montanhas da cordilheira dos Órgãos... Via que ao longe uma atmosfera de perigo se desenhava: “Grossas nuvens escuras e pesadas que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos acobreados”...
Algum tempo se passou e as montanhas simplesmente desapareceram. Elas foram envolvidas pelas nuvens escuras... A noite que caía tornava a visão ainda mais tenebrosa... Peri perguntou se Cecília queria ir para a terra firme. Ela respondeu que ele mesmo havia escolhido retornar ao rio e que estava bem acomodada.
A pergunta fez Cecília querer saber se algo estava preocupando Peri... Ele a sossegou e disse que poderia dormir tranquilamente. De sua parte, o goitacá decidiu permanecer atento.
(...)
À sua volta a escuridão dominou a paisagem. Peri sabia que o horizonte estava dominado por negras nuvens... A noite prosseguiu, Cecília dormiu e ele continuou firme em sua vigilância... As prateadas águas do Paraíba refletiam o céu estrelado... De repente, uma ventania provocou agitação das árvores das margens...
Das distantes montanhas, Peri notava os clarões típicos das tempestades... De tempos em tempos, rumores surdos e abafados eram seguidos de tremores subterrâneos que faziam ondulações na superfície do rio. Esses sinais da natureza levaram-no a curvar-se e encostar o ouvido nas águas... Então percebeu “um som estrepitoso: semelhante ao quebrar-se da catadupa (queda d’água como a cachoeira), precipitando-se do alto dos rochedos”.
Como podemos perceber, uma grande catástrofe estava prestes a alcançar o casal de personagens... Seria o seu fim?
Peri decidiu levar a canoa para a margem, onde havia uma grande palmeira... Às hastes dessa árvore se prendiam cipós e parasitas de árvores próximas. Ele tomou Cecília nos braços e, no momento em que deixou a canoa, o rio agitou-se como se estivesse em estado de convulsão... Foi como se o Paraíba tivesse soltado “um gemido profundo e cavernoso”... Depois ele retornou ao seu leito, sua superfície se fez espumada.
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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