sexta-feira, 28 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – a história de Débora, filha de Sueli Rezende, e sua trajetória ao encontro da mãe

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_27.html antes de ler esta postagem:

Vimos que Débora Aparecida Soares cresceu distante de sua mãe biológica (que, como sabemos, era a polêmica Sueli, interna do Colônia). Arbex informa que sua infância foi marcada por visitas ao hospital psiquiátrico, onde, sem saber, chegou a conversar com sua verdadeira mãe.
Holocausto Brasileiro registra que a menina era muito querida pelas internas... Enquanto Débora corria pelos corredores, mantinha contato com “aquelas mulheres nuas e de cheiro ruim” e, não raras vezes, conversava com elas. As “tias”, como as chamava, queriam pegá-la no colo como se fosse a neném do lugar.
Débora e Sueli trocaram palavras num diálogo em que a menina quis saber por que a “tia” vivia naquele ambiente... A interna explicou que não tinha onde morar, mas que era mãe de duas filhas... Débora se recorda de ter dito que gostaria de brincar com elas, mas a “tia” não sabia por onde as duas andavam.
(...)
Conforme o tempo passou, vários questionamentos perturbaram Débora... Ela cresceu sem saber que fora adotada por Jurema Soares, mas aos poucos percebeu que entre elas havia muitas diferenças... Além disso, sentia-se muito mais pressionada do que amada pela mulher.
Aos vinte anos, Débora se mudou para a histórica cidade de São João del-Rei, onde tornou-se estudante do curso de Letras... Durante o período de férias de 2005, ela se desentendeu com Jurema. Sua percepção era a de que levava uma vida infeliz e repleta de incertezas.
Em 2007, ela desabafou suas angústias com uma senhora que havia cuidado dela durante a infância. Então a mulher revelou sua verdadeira história... Isso aliviou a consciência de Débora.
(...)
Depois de conhecer suas origens a partir da conversa com a antiga conhecida, a moça falou com o irmão (cinco anos mais velho que ela) a respeito de sua descoberta... O rapaz explicou-lhe que desconfiava que ela não fosse sua legítima irmã, pois não viu a mãe com “barriga de grávida” até o dia em que lhe apresentou Débora recém-nascida.
(...)
Débora animou-se a encontrar a mãe biológica... Em seu íntimo, tinha certeza de que ela também desejava vê-la. Então passou a procurar informações a seu respeito.
Ela ouviu de Jurema que sua mãe biológica fora um tipo desprezível e rejeitado por todos por causa de suas atitudes agressivas e extravagantes. Mas nada daquilo poderia anular a sua vontade de estar com Sueli.
Assim, Débora decidiu revisitar o Colônia (agora uma instituição vinculada ao Fhemig – Fundação Hospitalar do estado de Minas Gerais)... A secretaria a encaminhou a um dos pavilhões femininos, porém logo reconheceu que a paciente não se tratava de sua mãe. Apesar disso, contaram-lhe a respeito de Sueli Rezende, que lamentavelmente havia falecido há um ano.
(...)
A triste notícia fez Débora mergulhar no passado de sua verdadeira mãe. O hospital permitiu que ela acessasse os registros a respeito de Sueli Rezende...
É claro que isso não acalentou a sua dor, mas foi assim que ela recolheu fotografias e alguns poucos objetos (sendo um terço rosa o “mais significativo”, guardado por ela “como relíquia”).
A partir dos prontuários (e de vários outros registros), Débora ficou sabendo o quanto sua mãe se esforçou e atuou de modo consciente por ocasião do parto em 23 de agosto de 1984.
Sem dúvida, Sueli pode ser considerada “a mais famosa interna da história do Colônia”.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 27 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – Sueli Rezende, sua lucidez e rebeldia; seus dramas no Colônia; triste história de separação forçada em relação à filha Débora

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_24.html antes de ler esta postagem:

Outras tantas histórias registradas em Holocausto Brasileiro merecem nossa consideração. Mas nossas limitações impossibilitam referências a todas elas, então prosseguiremos nas postagens destacando algumas... Entendo que elas (as postagens) cumprem a intenção de divulgar a pesquisa, pois, inegavelmente, ela (a pesquisa) tem o mérito de selecioná-las (as histórias) para evidenciar como o Colônia aprofundou os dramas pessoais de seres humanos profundamente marcados pelo sofrimento.
(...)
Sueli Rezende era de uma numerosa família da cidade de Passos de Minas. Por sofrer de epilepsia, seus pais decidiram separá-la dos outros seis filhos... Então passou a conviver em Belo Horizonte, na casa de um de seus tios. Sua iniciação escolar foi marcada pelo contato com crianças que vivenciavam condições melhores do que as suas. Podemos depreender isso a partir das informações sobre a necessidade que a menina tinha de pedir a merenda que os colegas levavam para a escola... Isso ela conseguia em troca de “favores sexuais”.
Quando completou oito anos, Sueli foi entregue ao juizado de menores, que a encaminhou a um internato na cidade de Oliveira. A instituição recebia crianças órfãs e outras socialmente indesejadas por representarem algum “inconveniente aos familiares”. Muitas das crianças de Oliveira tiveram o Colônia como destino.
Em 1971, Sueli também foi transferida para Barbacena... Ela passou o resto de sua existência no hospital psiquiátrico, onde faleceu em 2006, quando tinha 50 anos.
Sueli passou por momentos muito difíceis no Colônia. Desde o princípio sofreu agressões de funcionários e de internos... Para se defender, desenvolveu táticas de violência extremada... Assim, não foram poucas as vezes que arrancou orelhas de rivais a dentadas. Ela também ficou aprisionada (sem roupas) em total isolamento, sem ter como se proteger durante as noites mais frias.
Sofreu espancamentos de grupos numerosos... Em resposta, agredia quem quer que julgasse responsável pelo seu sofrimento. A fama de Sueli tornou-se conhecida por todos... As pessoas se assustavam com o seu comportamento extravagante ao causar ferimentos no próprio corpo (entre suas atitudes aterrorizantes, introduziu um cabo de vassoura na vagina, feriu os pulsos e chegou a arrancar um de seus dentes com um alicate).
(...)
Há registros que datam de 1981 e dão conta de que Sueli agarrou uma pomba no pátio e a dilacerou com os dentes na presença de funcionários e pacientes... Justificou-se dizendo que estava com fome e que naquele momento era a única refeição que podia fazer.
Conta-se que certa vez, para escapar dos funcionários e seus castigos físicos, escondeu-se no porão por uma semana... Ali passou por muitas necessidades e alimentou-se de ratos. É bem verdade que José de Malaquias (um interno de Santos, com o qual teve uma filha, Débora) levava-lhe comida que roubava no refeitório, mas ele nunca conseguia quantidade suficiente para matar a fome da amiga.
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Uma das maiores alegrias de Sueli foi o fato de ter gerado a menina Débora na tarde de 23 de agosto de 1984, mas logo a criança lhe foi retirada e entregue a uma funcionária do hospital, Jurema Pires Soares... A interna passou a vida inteira recordando-se da filha, especialmente por ocasião de seu aniversário, e sempre alimentou a esperança de um dia encontrar-se com ela. Até às vésperas de sua morte, Sueli falou de sua “filha morena”.
(...)
Em sua infância, devido ao trabalho da mãe adotiva, Débora esteve no Colônia por diversas ocasiões. Numa delas conversou com a própria Sueli, que lhe disse que havia tido duas filhas (a outra nasceu em julho de 1986, mas sobre ela não se tem notícia. Sabe-se que também foi doada, como cerca de trinta outras crianças nascidas no Colônia).
Anos mais tarde, Débora vivenciou dramas existenciais complexos e até tentou suicidar-se... Conheceu suas verdadeiras origens e relembrou da ocasião em que esteve junto da verdadeira mãe. Soube então os motivos de uma funcionária ter se retirado para chorar: “todos ali conheciam a história delas”, menos elas próprias.

P.S: Os que assistiram Em Nome da Razão devem saber que aquela paciente que aparece cantando uma música de protesto contra as péssimas condições do hospital é Sueli Rezende, compositora da letra e da música; na véspera do natal de 2005, Débora tentou se suicidar ingerindo uma superdose de comprimidos e sentando-se nos trilhos da estrada de ferro que chega ao Colônia; a jovem foi socorrida por uma amiga e levada para o “hospital regional da Fundação Hospitalar de Minas Gerais” (que foi construído em área onde existia o antigo Pavilhão Afonso Pena) para lavagem intestinal; por incrível que pareça, ela esteve bem próxima de sua verdadeira mãe, que ocupava um dos leitos; poucos dias depois, em janeiro de 2006, Sueli morreu após infarto. “Faleceu chamando por Débora”.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 24 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – Sônia e sua rebeldia; Terezinha, a “filha” que ela escolheu; programa “De volta para Casa”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_21.html antes de ler esta postagem:

Não se sabe ao certo a data de nascimento de Sônia e nem onde ela nasceu... No entanto, o documento de identidade providenciado quando se estimava que ela já tivesse uns 45 anos registra o dia 28 de julho de 1950 e a cidade de Barbacena.
Sua história é semelhante à de muitos outros ex-pacientes. Desde a sua internação foi abandonada à própria sorte... Passou por várias agressões que incluíam choques elétricos e às “injeções de entorta”.
Ela passou trancafiada por algum tempo, sem cobertor para que pudesse aliviar a friagem... Muitas vezes bebia da própria urina para não padecer de desidratação. Como seu comportamento era rebelde, foi punida com o “mergulho na banheira de fezes” em várias ocasiões. Mas os funcionários não a desprezavam totalmente, tanto é que sempre que precisavam de sangue para transfusões em pacientes anêmicos ou debilitados pela lobotomia, espetavam-lhe agulhas sem maiores questionamentos.

                                                                                 De acordo com Holocausto Brasileiro, a lobotomia é uma cirurgia de rompimento das “vias que ligam os lobos frontais ao tálamo”; uma “técnica bárbara da psicocirurgia” ainda realizada no país.

O inconformismo de Sônia a levava a agredir o próprio corpo e, para se defender, atacava com violência funcionários e internos... Aos poucos sua fama de violenta se espalhou e ela passou a ser temida. Arrancar o próprio dente com alicate e jogar esmalte sobre as feridas foram atitudes que a estigmatizaram.
(...)
Pelo menos em duas ocasiões, Sônia engravidou no Colônia e, para evitar que a incomodassem ou maltratassem o bebê, espalhou fezes sobre a própria barriga. Esse expediente foi utilizado também por outras internas que engravidaram no hospital. Ela teve duas crianças, sendo uma delas uma menina que morreu, e a outra, um menino (que tem mais de 25 anos, e ao tempo da publicação de Holocausto Brasileiro, no ano passado, estava preso).
(...)
Arbex registra que em 2003, Sônia teve o direito de ser transferida para uma “residência terapêutica”. Isso foi possível graças às mudanças implantadas a partir da Lei Orgânica de Assistência Social, que propiciou também o “Benefício de Prestação Continuada” às pessoas com necessidades especiais e com histórico de internações prolongadas e sem possibilidades de retorno à família.
O que se pode depreender é que Sônia “adotou” a companheira Teresinha como se esta fosse sua filha... Ela “bateu o pé” e insistiu que só se encaminharia para a nova morada se sua amiga inseparável a acompanhasse.
Sobre a “Residência Terapêutica” que passaram a dividir com cinco ex-internas do Colônia, pode-se dizer que ela proporciona uma condição mais digna e cidadã aos egressos do Colônia... Para termos ideia, Sônia e Teresinha estranharam o fato de, ao chegarem, não terem de se desfazer de suas roupas ou de se banharem com água gelada... Em vez disso, banho quente, guarda-roupa, sabonete e toalhas exclusivos.
(...)
A possibilidade de se mudarem do Colônia em 2003 se deve ao fato de nesse ano ter sido instituído o programa “De volta para Casa” pelo Ministério da Saúde. O programa garante um salário mínimo, além de uma bolsa mensal (R$240, de acordo com as informações de Holocausto Brasileiro).
(...)
Devemos entender que a reabilitação deve ser plena.
É claro que a mudança na vida dessas pessoas foi radical...
Elas se interessam por roupas, sapatos e alimentos, itens negados a elas no passado. O intenso consumo de refrigerantes e doces, descoberta recente em suas vidas (é claro que não se pode esquecer a péssima alimentação que receberam no passado), aumentou a glicose de Sônia.
Há autonomia no gasto e, embora analfabetas, Sônia e Teresinha vão se acostumando a negociar de acordo com as espécies animais que figuram em cada uma das notas de nossa moeda (Tartaruga Marinha, Garça, Arara, Mico-Leão, Onça-Pintada e Garoupa).
Em Barbacena foram criadas 28 residências como essa. Elas abrigam 160 ex-pacientes. Os relatos dão conta de uma intensa movimentação na economia do município.
(...)
Em 2011 Sônia viajou de avião para Porto Seguro (estado da Bahia) e avistou o mar pela primeira vez em sua vida.
Que bom que as oportunidades se descortinam para ela. E também para os demais ex-internos sobreviventes do Colônia...
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sexta-feira, 21 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – internada por tristeza; descaso das autoridades; solidariedade; Sônia e Terezinha

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_20.html antes de ler esta postagem:

Graças aos depoimentos coletados, Holocausto Brasileiro conseguiu reunir informações que nos dão um quadro completo do que foi o Colônia... A própria Francisca (das últimas postagens) se emociona ao lembrar-se do trabalho na cozinha. Seu relato dá conta de que a alimentação era sempre escassa e pobre e que a “água misturada à farinha de mandioca encorpavam o caldo” servido aos internos...
Mas não há dúvida de que os dramas pessoais acabam atraindo a nossa atenção. Não há como não lamentarmos as condições desumanas a que tantas pessoas inofensivas foram relegadas... Isoladas, esquecidas, maltratadas e exploradas.
(...)
A reprodução de um documento de 1911 revela-nos os “Quesitos” de Maria de Jesus ao dar entrada no manicômio. O papel apresenta 26 informações que certamente alimentaram o prontuário da paciente. Nele o funcionário registrava de próprio punho o que pode ser considerado o “diagnóstico inicial”.
O documento revela a idade da paciente (23 anos) quando de sua chegada ao Colônia; se ela possuía alguma profissão ou grau de instrução; se possuía parentes vivos, e quais eram as causas das mortes na família; se havia histórico familiar de loucuras, “moléstias nervosas de histeria, epilepsia ou paralisia”...
O último item da ficha é a respeito das causas da moléstia, se são de natureza moral, “como desgostos de família, perdas de fortunas...”.
É interessante observar que boa parte dos “quesitos” foi preenchida com um “não se sabe”... Outros tantos (caráter habitual do doente; manifestações por atos e palavras; se o estado do fichado apresenta fúria e agitação) mereceram do funcionário a informação de que a paciente era “calma e triste”... Então, em síntese, o motivo da internação de Maria de Jesus era a sua “tristeza”.
(...)
Arbex explica que em 1961, durante o breve governo Jânio Quadros, o presidente “colocou o aparato governamental a serviço da instituição” para mudar o quadro calamitoso da assistência àqueles “enfermos”. Em 1971, parlamentares até criaram comissões para tratar do tema, mas a situação prosseguiu sem alterações.
(...)
Isso significa dizer que o cotidiano dos internos permaneceu como o descrito pelo senhor Geraldo Magela Franco, que trabalhou no Colônia como guarda por três décadas desde 1969. Ele lembra que acordavam os pacientes às cinco horas da manhã e que seguiam para o pátio qualquer que fosse a condição meteorológica... Permaneciam o dia inteiro e só eram deslocados para os prédios ao anoitecer.
Muitos deles perambulavam nus, pois não tinham o que vestir (logo que chegavam ao hospital suas roupas eram confiscadas para a higienização, e muitos só possuíam a peça que traziam junto ao corpo)... Perambulavam muito próximos uns dos outros no pátio para que pudessem se aquecer mutuamente...
Não foram poucos os que entregaram os poucos trapos que possuíam para alimentar fogueiras. Os casos de solidariedade entre os miseráveis não eram raros.
(...)
Holocausto Brasileiro cita o caso de Sônia Maria da Costa, que permaneceu no Colônia por trinta anos... Ela era conhecida por seu comportamento agressivo em relação a funcionários opressores e “pacientes salientes”, mas também por ajudar a curar as colegas que padeciam de dores diversas... E fazia isso sem remédios.
A amiga Terezinha, por exemplo, foi assistida durante muitas noites em que uma infecção no ouvido a atormentava. Sônia esquentava pedaços de cobertor no pátio, e os deitava sobre a orelha da paciente que amparava nos braços. Assim permanecia por horas, até que o sono de Terezinha chegasse.
As duas nunca mais se separaram. Sobre essa amizade trataremos na próxima postagem.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quinta-feira, 20 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – considerações sobre a paciente Conceição Machado, histórico de sua internação, rebeldia e amizade inspiradora com Francisca Moreira dos Reis

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_19.html antes de ler esta postagem:

Vimos que desde criança Francisca tinha acesso às dependências do Colônia porque sua mãe era funcionária da instituição... De tanto que participava do ambiente, era comum ajudar os funcionários em pequenas tarefas. O cotidiano a fez conhecer mais de perto a difícil realidade dos internos.
(...)
Em algumas ocasiões, Francisca passava o dia inteiro junto à mãe, e não foram poucas as noites em que dormiu no Colônia. A vivência permitiu-lhe uma interpretação diversa a respeito dos pacientes... Normalmente ouvia que eles se tratavam de “loucos perigosos”, mas ela relata que diversas vezes eles a protegiam e mimavam.
Aos poucos ela se aproximou mais de uma das internas, Conceição Machado, da qual se tornou amiga.
Sobre Conceição Machado, devemos explicar que ela havia sido internada no manicômio pelo próprio pai simplesmente porque exigia remuneração (pelo seu trabalho na fazenda da família em Dores do Indaiá) igual à dos irmãos, pois as tarefas que desempenhavam eram as mesmas...
Por mais absurdo que possa parecer, o entendimento do pai de Conceição em relação a essa rebeldia foi internar a filha em maio de 1942... Para ele tudo era bem simples, já que bastou embarcá-la no “trem de doido”. Uma vez no manicômio, Conceição não incomodaria mais os familiares.
Arbex revela que em trinta anos nenhum deles jamais a visitou.
(...)
Sua condição a tornou rebelde.
Sua lucidez não admitia o tratamento dispensado aos pacientes, e muito menos ser taxada de louca pela instituição. Não é por acaso que os seus primeiros dias no Colônia foram marcados por várias agressões aos funcionários... Conceição protestava sobretudo contra os maus-tratos que os pacientes recebiam.
É claro que sua atuação provocou as retaliações. Não é por acaso que ela permaneceu trancada numa diminuta cela por mais de dois anos, e com a limitação de contemplar a luz do sol por apenas vinte minutos a cada dia.
Mas Conceição era destemida e chegou mesmo a interpelar o diretor (José Theobaldo Tollendal) em sua própria sala... Na ocasião, sugeriu que se ele provasse (e aprovasse) o café servido aos internos, então eles não teriam do que reclamar... Suas reivindicações giravam em torno da falta de tratamento adequado aos pacientes e à alimentação escassa e de má qualidade.
Foi natural que ela terminasse por se tornar líder dos demais internos.
(...)
Sua atuação chamou a atenção da menina Francisca, que se viu sensibilizada pelos seus dramas e determinação. Entre as duas consolidou-se a amizade.
A filha da funcionária manifestou seu desejo de que Conceição participasse de seu casamento... De fato, quando completou quinze anos, casou-se com o cabo Pedro Vitorino dos Reis, da Aeronáutica, na igreja São José. E Conceição compareceu conforme o desejo de ambas.
Sete anos depois, em 1977, Francisca foi aprovada em concurso público e ingressou no Colônia como auxiliar de serviços gerais... 1979 é o ano em que, na tentativa de se tornar atendente de enfermagem, presencia os testes que resultaram na morte de dois pacientes do pavilhão Afonso Pena. Este episódio foi relatado na postagem anterior
(...)
Atualmente Francisca milita no Sindicato Único da Saúde, que agrega quase 20 mil servidores no estado de Minas Gerais. Não há dúvida de que esse engajamento tem inspiração na garra de Conceição.
P.S: Os que assistiram Em Nome da Razão devem saber que aquela paciente que aparece junto a outras internas numa varanda, falando de várias necessidades que enfrentavam no Colônia, é Conceição Machado.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 19 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – considerações sobre a aplicação do eletrochoque nos pacientes do Colônia; funcionários, afazeres extras e possibilidades de promoção; depoimento de Francisca Moreira dos Reis

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_18.html antes de ler esta postagem:

Desde 1903 muitos funcionários passaram pelas administrações do Colônia, além dos próprios diretores e médicos psiquiatras, havia o pessoal da limpeza e da cozinha, a gente da vigilância e os enfermeiros... Muitos deles tiveram de exercer funções extras e não poucas vezes incompatíveis com suas qualificações.
Os remanescentes se recordam das dificuldades que enfrentavam e do sofrimento dos pacientes... Em ocasiões de perturbação (da ordem), mesmo sem formação específica, qualquer podia um fazer a intervenção ministrando comprimidos ou injeções ao “paciente alterado”.
Um dos ex-funcionários foi entrevistado por Arbex e garantiu que nem sempre as medicações e os tratamentos de choque eram resultado de terapia... Ele lembra que se recorria a esses expedientes para conter atitudes rebeldes e intimidar os internos mais exaltados.
Os eletrochoques eram tão comuns no Colônia que muitas vezes “a energia elétrica da cidade não era suficiente para aguentar a carga”. É o que garante o médico psiquiatra Ronaldo Simões Coelho, que trabalhou no Colônia no começo da década de 1970.
(...)
Havia uma política de incentivo à ”evolução profissional”. Os funcionários tinham chances de se mostrarem aptos às funções mais complexas no tratamento dos pacientes. Eles deviam passar por avaliações práticas, como a aplicação de injeções, definir os comprimidos adequados a cada caso, fazer curativos e executar o eletrochoque.
Holocausto Brasileiro apresenta o depoimento de Francisca Moreira dos Reis... Ela começou a trabalhar no Colônia em 1977. Depois de dois anos ela participou de um “treinamento-teste” com outras vinte candidatas que disputavam o cargo de atendente de enfermagem... O exame a que se submeteram consistia em aplicar o eletrochoque em pacientes masculinos no Pavilhão Afonso Pena.
Francisca decidiu que verificaria o teste das demais colegas para ter noção se conseguiria realizar a tarefa a contento... Ela conta que a primeira candidata era uma das companheiras da cozinha, Maria do Carmo.
(...)
O relato nos dá uma ideia de como ocorria o procedimento.
Maria do Carmo cortou um pedaço de cobertor e o colocou na boca do paciente, que estava amarrado à cama. A testa da “cobaia” foi umedecida... Maria aguardou que um breve instante se passasse para encostar os eletrodos nas têmporas do indivíduo. Isso foi feito sem nenhuma anestesia enquanto o aparelho descarregava 110 e, depois, 120 volts.
(...)
Francisca conta que o paciente não resistiu aos choques e morreu ali mesmo diante de todos... O tipo foi “embrulhado” num lençol e despachado para o chão até que o levassem ao necrotério.
Mas os testes deviam prosseguir.
Como se nada tivesse ocorrido, solicitaram que a segunda candidata se aproximasse do leito de um paciente mais jovem do que o primeiro... Também este infeliz teve o mesmo destino do anterior. Ele também não suportou a descarga elétrica e morreu...
Francisca também não pôde suportar aquele ritual e retirou-se do pavilhão gritando que não queria mais saber daquele curso.
(...)
A entrevistada conta que preferiu continuar trabalhando na cozinha... Depois de algum tempo se desligou do Colônia, e para lá retornou em 1988.
O seu caso é muito interessante, pois ela já conhecia o manicômio desde a década de 1960... Aos dez anos de idade ela tinha acesso ao lugar para entregar a marmita à mãe, Maria José Moreira, funcionária do Colônia desde 1959...
Retomaremos o assunto na próxima postagem.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

terça-feira, 18 de março de 2014

“Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex – considerações sobre o “comércio da morte”, a venda ilegal de cadáveres do Colônia a faculdades de Medicina do país; o depoimento de Ivanzir Vieira

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/03/holocausto-brasileiro-genocidio-60-mil_16.html antes de ler esta postagem:

O professor Ivanzir Vieira, que desde o final da década de 1960 ministrava aulas na Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, testemunhou o resultado de um acerto entre o Colônia de Barbacena e a instituição de ensino em relação ao fornecimento de cadáveres para dissecações.
Holocausto Brasileiro registra o episódio de um dia do mês de março de 1970, quando o professor chegou à faculdade e constatou que o prédio estava ermo...
Não encontrou alunos, funcionários ou professores... Tudo estava estranhamente silencioso... Além dessa situação inusitada, Vieira notou o forte odor que provinha do interior da escola de Farmácia. O mau cheiro era tanto que o professor concluiu que o prédio poderia estar infestado de centenas de ratos mortos.
(...)
Havia a possibilidade de a situação ser resultado de uma das brincadeiras dos jovens estudantes acostumados a provocar gozações com gás sulfídrico. Mas dessa vez a situação era exagerada demais... Pessoas que passavam em frente à instituição protegiam a respiração...
(...)
Ao avançar pelo interior da escola com o maior cuidado, Vieira se espantou ao deparar-se com dezenas de cadáveres acomodados no pátio interno... Os corpos estavam em “posições grotescas”, sendo que as mulheres estavam dispostas com “saias ou camisolas erguidas, pernas abertas, desnudando sua intimidade”. Os homens também estavam com calças e cuecas baixadas. Todos estavam bem sujos, desgrenhados, pálidos e magérrimos.
Vieira observou os rostos inertes e conseguiu detectar singeleza em alguns... Concluiu que estavam mortos há muitos dias. No entanto permanecia sem entender por que estavam ali e naquelas estranhas posições... Sabia que a faculdade de Odontologia não precisava de tantos exemplares... Por que estavam ali? Onde estariam alunos e professores?
As dúvidas do professor foram dirimidas quando Salvador, um técnico que trabalhava para a faculdade de Medicina, apareceu... Ele o cumprimentou e quis saber por que havia comparecido na escola, pois o diretor suspendera as atividades do dia. Ivanzir Vieira respondeu perguntando sobre o que estava acontecendo ali, pois considerava o cenário digno do inferno descrito na Divina Comédia.
Salvador esclareceu que pela madrugada chegou à cidade um pessoal de Barbacena que trazia uma camionete repleta de cadáveres oriundos do hospício local... Explicou que contataram o diretor da faculdade e ofereceram os corpos por excelente preço (cada um a 1 milhão de Cruzeiros Novos, o equivalente a R$ 364,00 atualizados)... O diretor calculou que a oferta era muito boa, pois a escola contava apenas seis cadáveres para os estudos. Se recusasse o “material didático” de Barbacena a camionete seguiria para o Rio de Janeiro, onde havia cursos interessados.
O funcionário explicou que fora chamado com urgência e que já estava trabalhando há muito tempo, e sem ajudantes... Sua tarefa era árdua porque devia “formolizar” (a partir da virilha) trinta exemplares e depois colocá-los em tanques.
Vieira quis saber por que os corpos não foram encaminhados direto para a Medicina. Salvador explicou que os tanques estavam cheios de peças (com a pele devidamente retirada, musculatura exposta e membros reservados) para os estudos dos alunos de primeiro ano. O caso é que o laboratório da Farmácia estava esvaziado...
Ivanzir manifestou sua indignação e dúvida em relação à legalidade daquela operação... Sobre isso, Salvador esclareceu que nada sabia a respeito, mas emendou que a compra de cadáveres oriundos de Barbacena era muito comum entre as instituições superiores de formação de médicos.
(...)
O professor pensou sobre as histórias que contavam a respeito das práticas nos sanatórios de Barbacena, onde era hábito abandonarem pacientes com vestes molhadas ao relento para que morressem durante a noite. Talvez elas fossem verídicas.
Holocausto Brasileiro informa que entre 1969 e 1980 mais de 1800 corpos do Colônia foram vendidos “para dezessete faculdades de Medicina de todo o país”... Não há nenhum documento que indique a autorização dos familiares...
(...)
Quando a oferta de cadáveres era muito maior do que a demanda universitária, funcionários do Colônia instalavam tonéis no pátio da instituição para que eles se decompusessem... Isso ocorria sem a menor cerimônia e era feito na presença dos pacientes.
Os cadáveres de Barbacena, quando dissecados por estudantes, apresentavam pulmões tuberculosos... O doutor Paulo Henrique Alves relatou que isso era muito comum e que os professores de sua época de estudante explicavam que se tratava de algo comum entre os mortos em Barbacena. Alves, que participa de missões do “Médicos sem Fronteiras”, esclareceu ainda que (quando tomou conhecimento da prática entre as faculdades e o hospital) tornou-se um crítico daqueles procedimentos.
O “comércio da morte” foi interrompido por Jairo Toledo, quando foi diretor do Colônia pela primeira vez na década de 1980.
Leia: Holocausto Brasileiro. Geração Editorial.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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