Certamente não é fácil compreender o emaranhado de questões que Robert levava em consideração ao tratar da necessidade de denunciar os campos de morte soviéticos... “O horror está em toda parte”, sentenciou... Sabemos que Henri faria a mesma reflexão após a reunião secreta para a entrevista com Peltov...
(...)
Dubreuilh despejou uma série de imperativos em relação às desgraças que
se abatiam sobre homens e mulheres que “morriam sem jamais terem vivido”...
Anne o ouviu pacientemente a respeito da “fadiga, pobreza, desespero do
proletariado francês, miséria da Espanha e da Itália, escravidão dos povos
colonizados, da China e da Índia, a fome, as epidemias”... E por fim Robert
perguntou se ela o compreendia em sua condição de intelectual: Afinal, ao
denunciar os campos de concentração estaria “trabalhando em favor dos homens,
ou contra eles?”.
Anne concordou, porém indagou se, de fato, a
causa da URSS ainda poderia ser confundida com a da humanidade... Em sua
opinião, definitivamente, a existência dos campos deveria trazer à tona a
questão do modelo implantado pelos soviéticos...
Também essa consideração foi rebatida por Robert...
Para ele, seria necessário saber se o expediente denunciado não era
indispensável ao regime, se estaria relacionado à determinada política passível
de alteração, ou mesmo se não seria extinto após a recuperação do país...
Anne achou que a discussão se encerrava por ali... Os dois retornaram a
casa e “fingiram que trabalhavam”. Ela trouxe muitas anotações e livros referentes
ao congresso do qual participara nos Estados Unidos... Havia a necessidade de
organizá-los, mas não conseguia se concentrar na tarefa.
(...)
Robert tomou o ônibus às dez da manhã... Seguiu para o
encontro em que Peltov foi apresentado e esclareceu os documentos que havia entregado
a Scriassine...
(...)
Anne investigou a correspondência na esperança de encontrar uma carta de
Lewis... Não havia nenhuma... Ela bem sabia que as cartas demoravam a chegar e,
além disso, ele dissera que só escreveria depois de oito dias que tivessem se
despedido. Uma tristeza invadiu o seu coração... Estava longe do amado e nada
podia fazer...
(...)
No escritório e escolheu um disco para ouvir enquanto refletia sobre a
conversa que teve com Robert... Pensou no quanto ele havia mudado... Na década
anterior ele teria se manifestado... Mas agora parecia ter se adaptado às “necessidades
do momento”... A opção de calar-se diante das graves denúncias em nada
combinava com o ideal que o levara a organizar o SRL... Estaria Dubreuilh menos livre?
É tudo uma questão de adaptação e esquecimento... Anne pensou sobre sua
condição e notou que também ela (e todas as demais pessoas) vive a adaptar-se e
a esquecer para não se perceber uma traidora de suas convicções (ou de um
amor).
(...)
Falar a respeito das denúncias, de acordo com Dubreuilh, corresponderia
a “trair outros”... Esses argumentariam que “não se faz omelete sem quebrar
ovos”...
Essa reflexão desencadeou outros tristes pensamentos...
A metáfora é clara... Pode-se dizer que o regime soviético adotasse os campos
como um “mal necessário”... Robert parecia considerar essa hipótese... Mas qual
seria o resultado da desumana operação? O que se diria a seu respeito no
futuro? Milhões de mortos infestando a terra (como os ovos quebrados para a
omelete)... A totalidade de vítimas é absurda (e o número é frio)... É um erro
pensar aritmeticamente quando se trata de somar humanos porque todos possuem
sua individualidade existencial. A humanidade não é “uma só pessoa”... Anne se
lembrou dos tempos de estudante e de suas palestras com Robert, quando se
postulava que “um dia a humanidade seria recompensada de todos os seus
sacrifícios”...
Acreditou
sinceramente nesse princípio? Obviamente as gerações sacrificadas não se erguerão
de seus túmulos para o regozijo do triunfo...
Anne desligou o aparelho de som, deitou-se no
divã e fechou os olhos...
Depois de algum tempo, escolheu um romance policial para se distrair...
Demoraria até que Robert retornasse.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2014/05/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_25.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto