Anne sabia que Paule precisava de um tratamento... Era com inegável alívio que admitia a impossibilidade de ter de lidar com a doente porque normalmente os analistas não cuidam dos casos daqueles que são muito próximos de seu convívio... Outro especialista deveria se encarregar de Paule.
Ela “escondeu-se” e não mais atendia ao telefone... Duas cartas enviadas por Anne ficaram sem resposta satisfatória... Em vez disso, a moça encaminhou recado sobre sua necessidade de permanecer sozinha por algum tempo.
Nas próximas postagens teremos mais notícias sobre o seu estado...
(...)
Nadine também parecia menos
dada a aparições em grupo... Desde o seu rompimento com Lambert praticamente
não trocava ideias com amigos... A exceção era Vincent, com quem eventualmente se
encontrava...
Além
de lidar com a redação da Vigilance,
Nadine não se dedicava a nenhuma reportagem...
Robert
passava o tempo ouvindo músicas... Iam ao cinema com frequência... Outro hábito
que passou a cultivar foi o de colecionar discos.
(...)
Numa
manhã, Anne deparou-se com um texto de Lenoir num jornal comunista... O rapaz
distribuía agressividades aos ex-companheiros... Henri era dos mais atacados;
Robert era o poupado.
Robert
concordou que o texto contra Henri era pesado demais... Admitiu que o fato de
não se tornar um anticomunista declarado (apesar de todos aqueles ataques) era
digno de reconhecimento...
Anne
aproveitou para reafirmar sua opinião sobre a lamentável dissensão entre
ambos...
Mas
Dubreuilh acrescentou que acreditava que Henri Perron estivesse satisfeito com
a tiragem de L’Espoir e também com os artigos de Samazelle... E ainda havia as
companhias de Trarieux e Lambert, “tipos direitistas”.
Anne argumentou que Henri talvez estivesse em situação
parecida com a dele... Àquela altura nenhum dos dois era bem visto por boa
parte da sociedade...
Robert admitiu que,
provavelmente, aquela era uma situação que perturbava bem mais ao seu
desafeto...
(...)
Apesar da teimosia do
marido, Anne via que os rancores enfraqueciam. Ousou afirmar que acreditava que
Henri estivesse arrependido da briga que tiveram...
(...)
Qual seria o papel do
intelectual? O que pode e o que deve ser?
Essas
eram questões que, segundo Robert, teriam pesado aos dois no tempo das
desavenças sobre a documentação que denunciava os campos soviéticos...
Agora Robert parecia
entender melhor a posição que cada um adotou por aquela ocasião... Anne sugeriu
que o paradoxo que se evidenciou estava no fato de Henri, que se importava
menos (do que Robert) com as posições políticas, ter adotado posição política
mais escancaradamente perturbadora...
Robert
concordou e disse que era provável que Henri já soubesse que “um intelectual
não tem mais papel algum a representar”...
Como
assim? Anne quis saber...
O
marido falou em tom de desabafo que o intelectual até pode redigir, mas com o
“cuidado de não dizer coisa alguma”...
Isso
quer dizer que Dubreuilh se contradizia... E isso porque sempre fora um
defensor da Literatura... Anne quis saber se ele não mais escreveria... Robert
esclareceu que aquilo era uma questão de tempo, pois bastaria finalizar o seu
“último ensaio” para não mais produzir texto algum.
Era
com tristeza que ele concluía que a Literatura vinha se prestando à
alienação... A busca da verdade ou a refutação do individualismo e imediatismo,
que sempre foram preocupações suas, pareciam não mais caber nas reflexões da
gente letrada.
Anne
lembrou-o de que aqueles princípios sempre o motivaram...
Com resignação, ele
continuou a afirmar que “as coisas mudaram”... Emendou que só via possibilidade
de resolução a partir dos comunistas... Ideais como os que ele sempre defendeu
soariam (naquele momento) como munição aos antirrevolucionários...
Era melhor silenciar... Essa era a sua conclusão.
Talvez por isso tivesse se
negado a falar dos campos soviéticos de trabalho forçado... E concluiu ainda
que “com a verdade não se pode vacilar”... “Ou se diz, ou não se diz”... Aquele
que não se decide a dizê-la sempre é melhor não se intrometer; é melhor
calar-se...
(...)
Anne entendia o marido. Ela
sabia que, para ele, o “silêncio a respeito dos campos russos” havia sido muito
pesado... Ela sabia (e sentia como ele) de seus remorsos sobre os sacrifícios de
tantos...
Renunciando-se a
escrever, punia-se.
(...)
Muita
coisa havia mudado desde o natal de 1944, quando Anne ressaltava que havia
“deveres intelectuais” que os vinculavam à produção escrita...
De acordo com Dubreuilh,
seus livros (apesar do pouco tempo que havia se passado) seriam pouco
significativos, ou até nocivos à causa da Revolução...
Quanta
incoerência!
Desejava
a vitória comunista e, no entanto, não conseguiria viver numa realidade controlada
pelos comunistas...
Ele
mesmo concluía que estava velho, e que o futuro que imaginava não era o mesmo
que vislumbrara no passado... Não via “lugar para si” no mundo que haveria de
surgir.
Talvez aquilo pudesse se tornar tema para o
encerramento de seu livro... Não seria má ideia.
E depois de o livro
finalizado? Anne quis saber.
Robert admitiu que faria o mesmo que os mais de
“dois milhões de homens”, ou seja, nada mais escreveria.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/01/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir-nova.html
Leia: Os Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto