Não eram poucos os que incorporavam o discurso dos brancos ricos.
Entre as empregadas domésticas isso era mais frequente, já que o contato com as famílias dos patrões propiciava uma espécie de doutrinação.
Não era por acaso que Chica, doméstica na casa de um juiz no Jardim América, sempre dizia ao Tião que no quilombo do Saracura viviam pretos que não queriam saber de trabalhar, eram beberrões e se envolviam na bandidagem.
Também na casa do juiz, a Chica aprendeu que os costumes que Tião cultivava estavam errados... Ela o criticava por recorrer à Siá Cotinha para curar as moléstias que as crianças contraíam (“bicho virado, febrão, olho gordo...”) com suas benzeções...
Chica também não aprovava os pontos de Umbanda. E não se conformava como Tião gostava de frequentá-los... A doméstica ficou indignada ao saber que ele havia influenciado Rosa a “se desenvolver no terreiro de Mãe Inácia de Oxóssi”, neta do antigo Pai de Santo do Bexiga, o “Pai Antônio”.
(...)
Faustino cita um trecho de cantoria repetida ainda
hoje em vários terreiros... Para Tião, a mensagem é uma referência ao antigo
Pai de Santo do bairro:
O meu Pai Antônio/ O
meu Pai Antônio/ É um preto de fama/ O meu Pai Antônio/ O meu Pai Antônio/ Ele
vence demanda/ Eu tenho fé/ Na Virgem Maria/ O meu Pai Antônio/ Seja o Nosso
Guia.
(...)
Descrevendo as atividades de lazer preferidas de Tião, Faustino
permite-nos conhecer um pouco da identidade cultural dos negros que viviam nos
cortiços e barracos na cidade de São Paulo no começo do século passado...
O personagem não deixa de comparecer ao terreiro de Umbanda, e não
despreza o samba de umbigada (de acordo com a nota do autor, “dança de roda
brasileira, que lembra o africano lundu e o português fandango” ... frente a
frente, os dançarinos “gingam de um lado e do outro, giram e batem-se, como se
fosse um encontro de barrigas” ... “mas na verdade o que batem são os joelhos”)
e o tambu (“tambor rústico, feito com tronco oco e couro de boi. O som grave
marca o ritmo para o samba rural”).
E tem mais: o samba fazia o
fundo para as partidas de futebol disputadas no “campinho do Cai Cai”; a Vai
Vai já era um Cordão que organizava ensaios abertos; seu Dionísio Barbosa
comandava o “Grupo Carnavalesco Barra Funda”; também “nas casas das tias
quituteiras” se ouvia bom samba.
A Romaria a Pirapora do Bom
Jesus era festa que Tião sonhava levar toda a família... A Romaria juntava
religiosidade com batucada... E isso era algo enraizado, fazia parte da
identidade cultural do povo simples.
(...)
Como sabemos, o local
onde Tião fazia bicos era o Largo da Banana... É por isso que ao deixarem o
cortiço instalado na propriedade do português, ele e a família se instalaram em
outros no próprio Bexiga, na Liberdade e na Baixada do Glicério.
Durante suas caminhadas até o Largo da Banana, Tião sempre encontrava
antigos companheiros, além das “belas e elegantes negras”... Nem dava para
acreditar que elas vivessem de cozinhar e lavar roupas e banheiros de patrões
brancos que não tinham a menor consciência da imponência de suas empregadas.
(...)
A Igreja da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que fica no Largo do Paissandu, era
o local por onde Tião mais gostava de passar durante as caminhadas...
O local não concentrava apenas os que chegavam para as
missas... Principalmente porque após as celebrações sempre ocorriam eventos
culturais de origem africana como a congada, o batuque, a umbigada e o moçambique...
Também se dançava o caiapó, que tem origem indígena.
Sobre a igreja, diz-se que originalmente ela se localizava no Largo do
Rosário... Porém com a construção da Praça Antônio Prado, em 1904 o local foi
completamente transformado... A “igreja dos pretos” foi removida com o objetivo
de “modernizar a localidade”.
Conta-se que a união dos oprimidos limitava-se às
festas e às cerimônias religiosas... Talvez por isso não se organizassem para
defender os seus locais de vivência.
É Tião quem garante que, se dependesse dele, a gente oprimida se uniria
mais... E isso não incluiria apenas os negros... Desde que a pessoa se sentisse
injustiçada poderia se juntar aos demais em torno de uma luta comum...
Infelizmente aqueles eram tempos de “lobo
comendo lobo”.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto