Ao relatar o cotidiano de Maria, a empregada doméstica de uma mansão de Higienópolis (aquela que estava sempre de ouvidos atentos ao rádio, sua companhia inseparável), Faustino revela-nos os episódios que deflagraram a Revolução Constitucionalista.
Notamos que ela se preocupava cada vez mais com a repetida locução do noticiário que garantia que “o copo está cheio até a boca; falta uma gota para transbordar”... Maria sabia que o levantamento de São Paulo em armas contra o governo Vargas era apenas uma questão de tempo, pois bastava algum episódio significativo para justificar o pretexto de mobilização.
(...)
Faltava a gota d’água...
Manifestações já vinham ocorrendo pelo centro da
cidade... Os participantes chegavam aos comícios inflamados pelos
radialistas...
Os discursos ilustravam a indignação contra o governo Vargas, sua
“vacilação” em relação aos encaminhamentos políticos para que uma nova
Constituição fosse elaborada, e de insatisfação e repúdio contra os
interventores impostos pelo presidente.
A gota que faltava para “encher o copo” deflagrador da
Revolução “pingou” na noite de 23 de maio, quando manifestantes mais exaltados
se dirigiram às sedes das organizações que apoiavam o presidente Vargas
(Partido Popular Paulista, liderado por Miguel Costa, “braço do Partido
Liberal”, e também a Legião Revolucionária). Muitos jovens estavam entre os que
tentaram invadir o prédio localizado “na esquina da Alameda Barão de
Itapetininga com a Praça da República”... Houve resistência e tiros foram
disparados para tudo quanto era lado.
Quatro manifestantes morreram durante o confronto: Mário Martins de
Almeida, 32 anos, que era fazendeiro na cidade de Sertãozinho; o auxiliar de
escritório Euclydes Bueno Miragaia, de 21 anos; Dráusio Marcondes de Sousa, 14
anos, estudante; Antônio Américo Camargo de Andrade, comerciante de 31 anos...
Orlando de Oliveira Alvarenga, escrivão de 32 anos, foi ferido durante a
manifestação e faleceu em agosto.
(...)
Sobre aquela noite que entrou para a história dos paulistas, o poeta
Guilherme de Almeida escreveu em 1943: (...)
e houve uma noite de heroísmo/ que marcou o teu batismo/ de glória: e por isso
é que/ tens quatro letras gravadas/ nas quatro estrelas douradas/ do topo MMDC.
(...)
Disparos durante o protesto...
Na sequência a multidão se enfureceu... A sigla MMDC passou a
identificar o movimento constitucionalista dos paulistas. Todos reconheceram
nela a homenagem aos mártires Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo.
(...)
Maria foi contagiada pelos sentimentos de revolta dos paulistas... Seus
pensamentos não abandonavam aqueles fatos e os discursos a favor da revolução.
A patroa a chamou... Via-se
que também ela parecia consternada com os últimos episódios na cidade... Ela
não tinha nenhuma ordem de serviço ou recomendação para o jantar... A madame
pretendia desabafar.
Ela pediu a Maria que
caminhasse ao seu lado no passeio pela alameda do grande terreno onde se
localizava a mansão... Chamou-a de amiga! Como diz Faustino, “a guerra provoca
fenômenos estranhos que podem até solapar as estratificações sociais”...
A patroa revelou que
se apresentaria à Junta de Alistamento... Contou também que as mulheres tinham
tarefas a cumprir e que suas amigas estavam se apresentando voluntariamente...
Elas colocavam os empregados à disposição da causa do MMDC...
A dona seguiu falando que o marido doutor estava muito chateado porque
entendia que bem poucos se engajavam com sinceridade e devoção à revolução...
Segundo ela, o patrão entendia que os alistamentos se deviam muito mais aos
tempos de crise... Não havia idealismo sincero... Apesar de baixo, era do soldo
que os alistados estavam atrás. Muitos eram os que entendiam que o alistamento
os tirava da condição de desemprego e miséria...
A patroa dizia essas coisas
sem ter a menor ideia de que a sua empregada era bem mais informada do que ela.
Evidentemente, Maria caminhou (por um bom tempo) sem nada dizer.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto