Logo que o pescador se retirou, a carroça repleta de corpos chegou à porta do cemitério... Os tipos descarregavam os mortos...
Além dos cadáveres, a carroça trazia Nada, que estava completamente embriagado... Bem ao seu estilo, passou a discutir com os detentos que faziam a função de recolher os “abandonados dos caminhos”.
Os homens insistiam em colocá-lo de volta à carroça... Nada esbravejou que estava vivo. Ao notar-se diante da secretária, pediu desculpas.
Secretária disse que não se importava e chamou-o para mais perto.
Continuando a se justificar, Nada explicou que havia bebido demais... Por isso o jogaram na carroça... De sua parte, achava que o mais correto era “suprimir”... A mulher quis saber o que ele queria dizer com aquilo.
Nada explicou que “tudo deveria ser suprimido”... Tudo! Quanto mais se suprime, melhores as coisas se encaminham...
Ele deu alguns exemplos das coisas que deviam ser extintas... Os apaixonados; as crianças; as flores; os rios... Tudo isso só despertava horrores... Os casais de namorados não mereciam mais do que cusparadas (mas era evidente que Nada só podia atingi-los pelas costas para não provocar rancores e revides)... As crianças não passavam de “corja imunda”... As flores têm “ares imbecis”... E o que dizer dos rios que não têm capacidade de mudar o seu curso?
O tipo despejava seus juízos até completar que apenas o nada existe... “Deus nega o mundo” e, de sua parte, ele negava Deus.
A secretária ouviu as besteiras que Nada tinha a dizer... Ela perguntou sobre como as coisas poderiam ser suprimidas... Ele respondeu que a bebedeira até à morte seria a solução... Tudo desapareceria.
(...)
Ela explicou que a técnica de Nada era inferior... A que Peste trazia
era muito melhor... Disse isso e quis saber como ele se chamava...
A resposta causou certa
confusão porque a secretária custou a entender que o nome do bêbado era Nada.
Ela gostou do que ouviu e pediu que ele se passasse para o lado da
administração... Certamente havia um cargo que ele podia preencher
satisfatoriamente.
(...)
Quem diria... Todos sofriam
as consequências da tirania de Peste enquanto Nada era chamado a contribuir com
a “nova ordem”.
A secretária pediu
que o primeiro alcaide desse as informações ao novo funcionário... Em seguida
orientou os soldados a venderem insígnias.
(...)
Ao notar que Diogo e Vitória haviam chegado ao local, ela mesma lhes
ofereceu uma insígnia... O rapaz quis esclarecimentos a respeito e foi
comunicado que se tratava de uma “insígnia de Peste”... Todavia a aquisição não
era obrigatória... Vitória disse que não a conhecia...
A secretária explicou que
não havia problema... Não precisavam usar a insígnia de Peste. Porém deviam
saber que seriam obrigados a usar “outra insígnia”... Seria o distintivo “daqueles
que se recusam”, e isso permitiria ao regime o reconhecimento imediato daqueles
que representavam problema.
Esse diálogo não se prolongou... Com um “até breve” a
secretária os dispensou.
(...)
O pescador havia retornado à cena há algum tempo... A autoridade voltou-se
a ele para que se explicasse. O homem humilde disse que estava chegando do
primeiro andar, onde disseram que ele deveria primeiro obter o certificado de
existência naquela sala... Só depois poderia receber o certificado de saúde
(documento necessário para a emissão do certificado de existência!).
Ele ficou sem entender quando a secretária sentenciou
que o episódio era “clássico”... Ela mesma explicou que aquilo era um sinal de
que definitivamente a cidade começava a ser administrada. Para o regime, todos
ali eram “culpados”... E quanto mais fatigados se tornassem tanto mais se sentiriam
culpados.
Então o processo tinha certa simplicidade: consistia em cansar os
cidadãos! Quando estivessem arrasados “o resto caminharia sozinho”.
É claro que o pescador não entendia o que ela queria dizer... Perguntou
se poderia ver os tais certificados de existência.
Sua angústia era grande, mas ouviu uma negativa... A argumentação
beirava ao absurdo, já que “sem a certificação de saúde não seria possível
emitir um certificado de existência”.
Mas então, o que poderia ser feito?
A secretária sintetizou que
restava o “prazer” (do sistema)... Revelou que poderiam emitir um certificado
válido por uma semana... É claro que haveria a necessidade de renová-lo.
O pescador perguntou sobre
um hipotético “indeferimento”... A secretária respondeu que evidentemente ser-lhe-ia
aplicada uma irradiação.
Com a maior
naturalidade, ela voltou-se ao primeiro alcaide para solicitar treze vias... O
pescador se espantou...
Um exemplar seria entregue a ele... Os demais
serviam para “o bom funcionamento” do sistema.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus-segundo_43.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto