Aqui nos interessa o texto...
Logo no início vemos Tertuliano Máximo Afonso numa loja de locação de vídeos.
Ele assinou a ficha de retirada da fita amargando (como sempre ocorria) a desconfiança de que o funcionário estranhara e achara graça do nome incomum.
Trata-se de um tipo simples, de “pouco ganho” em seu ofício de professor de História numa escola de ensino secundário.
(...)
O professor alugou a comédia “Quem Porfia Mata Caça”,
sugestão de um colega de ofício, professor de Matemática na mesma unidade
educacional.
Aconteceu que certo dia os dois tiveram um diálogo na sala destinada aos
docentes... Tertuliano manifestou que passava o tempo de folga na companhia dos
livros... Tipo visivelmente acanhado, o rapaz vivia uma fase depressiva... O de
Matemática apostava que a comédia lhe faria bem, já que a “distração sempre foi
o melhor remédio”...
O colega quis convencê-lo a comprar vídeos para organizar uma coleção...
Mas Tertuliano não se convencia e fazia comentários contrários aos diversos
gêneros e às novidades cinematográficas... Não suportava os exageros dos filmes
de ficção e seus “efeitos especiais”.
O outro insistiu... Aconselhou-o a variar a rotina marcada por leituras,
música e visitas a museus... Tudo tão cômodo... Era só alugar fitas na locadora
e assim sairia da mesmice dos documentários científicos relacionados à sua
área.
(...)
No dia mesmo em que Tertuliano resolveu assistir a fita sugerida pelo
colega de Matemática, sabia que tinha vários exercícios de seus alunos para
corrigir...
Os que conhecem a dedicação
dos professores ao seu ofício no Ensino Básico sabem que não são raros os dias
em que têm de levar para casa trabalhos que não tiveram possibilidade de
avaliar no ambiente escolar.
Resolveu não sair para
jantar... Arranjou-se com a refeição enlatada, tão comum nas casas dos
solteiros como ele (havia se divorciado há seis anos). Tinha três opções e
escolheu a que comeria a partir de sorteio lançando mão de tradicional
“cantinela de infância”.
Comeu do guisado de
carne acompanhado de copo de vinho... Após a rápida refeição teve de decidir sobre
a atividade a qual se dedicaria no seu resto de noite.
Sabia que se começasse a correção das tarefas escolares não teria tempo
para o filme... Por outro lado reconhecia que não havia nenhuma necessidade de
se dedicar à fita, algo supérfluo e perfeitamente adiável.
Havia também um livro ao
qual Tertuliano vinha dedicando atenção há algum tempo... Tratava-se de um
“estudo das antigas civilizações mesopotâmicas” cuja leitura parecia travada...
(...)
A mesma “cantinela de infância” definiu que assistiria ao filme.
Posicionou-se ante o aparelho de televisão e conferiu
brevemente as informações sobre a produção cinematográfica contidas na caixa de
“Quem Porfia Mata Caça”... Apenas algumas imagens, rostos sorridentes dos
principais, o nome da artista mais jovem em destaque... Somente isso. O
principal objetivo era o de assistir a uma “comédia levezinha”, como disse o
professor de Matemática. Não havia razão para exigir detalhes ou referências
extras.
De fato a produção era
apenas sofrível... Tertuliano riu uma ou duas vezes...
No final restou a sensação irritação e de que tinha
perdido tempo... Não via a hora de devolver a fita à locadora.
(...)
O programa dera em frustrante.
Era preciso se redimir, e o professor entendeu que
isso aconteceria se passasse a corrigir as atividades de seus alunos.
O relógio não passava das 23 horas quando iniciou a leitura e anotações...
A empreitada só foi concluída na alta madrugada.
Ainda arrependido por ter dedicado precioso tempo à tola comédia, Tertuliano
resolveu que ainda era tempo de retomar “estudos das antigas civilizações mesopotâmicas”.
Deitou-se e leu umas quatro páginas que versavam
sobre os semitas amorreus, o rei Hamurabi e o código.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-sono.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto