sábado, 13 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – um pouco sobre o protagonista Tertuliano, depressivo professor de História; a comédia sugerida pelo colega de Matemática; filminho e sensação de tempo perdido

Há o filme... E há o livro que o inspirou.
Aqui nos interessa o texto...
Logo no início vemos Tertuliano Máximo Afonso numa loja de locação de vídeos.
Ele assinou a ficha de retirada da fita amargando (como sempre ocorria) a desconfiança de que o funcionário estranhara e achara graça do nome incomum.
Trata-se de um tipo simples, de “pouco ganho” em seu ofício de professor de História numa escola de ensino secundário.
(...)
O professor alugou a comédia “Quem Porfia Mata Caça”, sugestão de um colega de ofício, professor de Matemática na mesma unidade educacional.
Aconteceu que certo dia os dois tiveram um diálogo na sala destinada aos docentes... Tertuliano manifestou que passava o tempo de folga na companhia dos livros... Tipo visivelmente acanhado, o rapaz vivia uma fase depressiva... O de Matemática apostava que a comédia lhe faria bem, já que a “distração sempre foi o melhor remédio”...
O colega quis convencê-lo a comprar vídeos para organizar uma coleção... Mas Tertuliano não se convencia e fazia comentários contrários aos diversos gêneros e às novidades cinematográficas... Não suportava os exageros dos filmes de ficção e seus “efeitos especiais”.
O outro insistiu... Aconselhou-o a variar a rotina marcada por leituras, música e visitas a museus... Tudo tão cômodo... Era só alugar fitas na locadora e assim sairia da mesmice dos documentários científicos relacionados à sua área.
(...)
No dia mesmo em que Tertuliano resolveu assistir a fita sugerida pelo colega de Matemática, sabia que tinha vários exercícios de seus alunos para corrigir...
Os que conhecem a dedicação dos professores ao seu ofício no Ensino Básico sabem que não são raros os dias em que têm de levar para casa trabalhos que não tiveram possibilidade de avaliar no ambiente escolar.
Resolveu não sair para jantar... Arranjou-se com a refeição enlatada, tão comum nas casas dos solteiros como ele (havia se divorciado há seis anos). Tinha três opções e escolheu a que comeria a partir de sorteio lançando mão de tradicional “cantinela de infância”.
Comeu do guisado de carne acompanhado de copo de vinho... Após a rápida refeição teve de decidir sobre a atividade a qual se dedicaria no seu resto de noite.
Sabia que se começasse a correção das tarefas escolares não teria tempo para o filme... Por outro lado reconhecia que não havia nenhuma necessidade de se dedicar à fita, algo supérfluo e perfeitamente adiável.
Havia também um livro ao qual Tertuliano vinha dedicando atenção há algum tempo... Tratava-se de um “estudo das antigas civilizações mesopotâmicas” cuja leitura parecia travada...
(...)
A mesma “cantinela de infância” definiu que assistiria ao filme.
Posicionou-se ante o aparelho de televisão e conferiu brevemente as informações sobre a produção cinematográfica contidas na caixa de “Quem Porfia Mata Caça”... Apenas algumas imagens, rostos sorridentes dos principais, o nome da artista mais jovem em destaque... Somente isso. O principal objetivo era o de assistir a uma “comédia levezinha”, como disse o professor de Matemática. Não havia razão para exigir detalhes ou referências extras.
De fato a produção era apenas sofrível... Tertuliano riu uma ou duas vezes...
No final restou a sensação irritação e de que tinha perdido tempo... Não via a hora de devolver a fita à locadora.
(...)
O programa dera em frustrante.
Era preciso se redimir, e o professor entendeu que isso aconteceria se passasse a corrigir as atividades de seus alunos.
O relógio não passava das 23 horas quando iniciou a leitura e anotações...
A empreitada só foi concluída na alta madrugada.
Ainda arrependido por ter dedicado precioso tempo à tola comédia, Tertuliano resolveu que ainda era tempo de retomar “estudos das antigas civilizações mesopotâmicas”.
Deitou-se e leu umas quatro páginas que versavam sobre os semitas amorreus, o rei Hamurabi e o código.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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