sábado, 25 de fevereiro de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – baderneiros de Diamantina de fins do século XIX ; o infortúnio da negra Júlia em seu dia de reinado na festa do Rosário; sobre o registro de 9 de novembro de 1893; a menina problematiza conceitos religiosos; o “Doutor Inglês” e o “céu dos ingleses”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_24.html antes de ler esta postagem:

Estávamos neste ponto em que Helena comentava a respeito de alguns rapazes de famílias importantes que se divertiam praticando maldades.
Em seus registros de 30 de maio de 1893, ela conta que os tipos também aprontaram na chácara de dona Teodora... Pularam o muro durante a noite e apanharam “todas as frutas maduras”. As que não estavam no tempo de serem recolhidas foram maldosamente cortadas pela metade... Puxaram as verduras... Bonitos repolhos foram atirados pelos canteiros. Danificaram abóboras, que foram despedaçadas... Uma delas era bem grande e vinha sendo preservada na esperança de que crescesse ainda mais.
Helena mostra toda sua indignação... Gostaria mesmo de vingar a agressão, porém isso estava longe de suas possibilidades... Ela mesma afirma que só se fosse homem para agir contra os ladrões.
Apesar de não entender bem, acabava reconhecendo o modo como a avó reagia aos infortúnios... Inicialmente dona Teodora dava a entender que se sentia chocada, depois sentenciava que “poderia ser pior”.
(...)
O jantar que Júlia havia preparado com tanto esmero foi estragado pelo bando.
Eles roubaram o leitão!
Pelo visto os arruaceiros planejaram muito bem a traquinagem... Pelo visto conseguiram convencer um menino pequeno a passar pela janela da sala. Este deve ter passado a noite escondido até que chegasse o momento de agir com os demais.
Helena descreve o prato, que “estava uma beleza”... “Cheio de farofa, com palitos enfeitados de papel de seda repenicado, prendendo rodelas de limão e azeitonas, e na boca uma rosa”.
Não há registros sobre o que ocorreu na sequência, o desfecho da festa ou o infortúnio de Júlia.

(...)

Helena Morley fez um interessante registro a 9 de novembro de 1893 em seu diário.
Mencionamos em postagem anterior que seus avós paternos eram ingleses... Certamente a menina não demorou a notar as diferenças entre os dois ramos familiares. Como não podia deixar de ser, divergiam religiosamente. A família de dona Teodora era católica e cumpria fielmente os preceitos sacramentais.
Helena conta que em tudo o seu pai agradava à sua mãe. Participava das missas e até deixava de comer carne na sexta-feira. Mas havia algo que ela não conseguia convencê-lo a fazer: confessar-se ao padre.
(...)
No começo Helena devia estranhar... Mas depois de algum tempo passou a não entender por que um homem como seu Alexandre (o pai) tinha de se confessar. Para ela, ele não devia ter pecados, pois jamais o vira fazer nada de errado.
A insistência de dona Carolina crescia na época da Quaresma. Ele respondia que de tanto que ela e os familiares rezavam, comungavam e rezavam “um pouco chegaria para ele também”.
A garota podia pensar que a pior situação que poderia ocorrer para a mãe seria Alexandre sofrer um ataque do coração... Dona Carolina não admitiria que ele morresse sem a confissão que os enfermos devem fazer para receber a unção.
O raciocínio de Helena era simples: seu pai era um homem bom! Iria para o inferno após a morte? Seus tios e os demais homens de Diamantina eram tão piores que o seu pai! Para que tipo de inferno eles iriam?
Não pensava como a mãe, mas não esperava discutir sobre essas coisas com ela... Até porque dona Carolina não admitia discutir temas da religião.
(...)
O avô inglês de Helena morreu quando ela era ainda bem pequena... Em sua memória restavam tristes lembranças do episódio. Principalmente porque a comunidade sabia que ele não podia ser enterrado em solo sagrado da igreja católica.
Sempre que discutia com alguma colega de escola (de Mestra Joaquina), suas oponentes vociferavam que seus avós não tinham ido para “o céu dos ingleses”.
Em Diamantina muito se falava a respeito da morte de seu avô paterno... O homem estava nas últimas e as irmãs de caridade, padres e até o bispo insistiam para que ele confessasse e se deixasse batizar. Ele respondia que “Toda terra que Deus fez é sagrada”.
As autoridades religiosas queriam impedir que os sinos das igrejas fossem dobrados em honra do “Doutor Inglês”... Mas os homens mais influentes da cidade conseguiram que eles badalassem por todo o dia.
Toda cidade acompanhou o seu enterro!
(...)
Helena registra que ainda falavam a respeito da bondade de seu avô inglês... Tratava-se de um homem caridoso e por isso mesmo muito respeitado. Quando ficava sabendo que alguém sem recursos estava doente, ele mesmo enviava os remédios necessários, dinheiro e uma galinha para que se providenciasse um caldo restaurador.
A menina se perguntava se um homem com toda aquela bondade podia ir para o inferno...
(...)
Helena queria saber de seu pai o que ela podia responder às amigas quando a provocavam a respeito de o avô ter ido para o “céu dos ingleses”.
Ele respondia que ela devia dizer que era para lá (para o “céu dos ingleses”) que também iria... E devia emendar que o céu dos ingleses “é o céu dos brancos e não dos africanos”.
Mais de uma vez falaram sobre essas coisas... Helena sempre acabava dizendo que se desse crédito às palavras do pai, às falações das meninas e também às da mãe, ela é que terminaria doida.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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