Ao ouvir do Doutor Margaride que tinha um “rival”, apesar de ser o único parente de Dona Maria do Patrocínio, Teodorico ficou furioso ao pensar que a fortuna de sua tia seria repartida após a sua morte.
O moço disparou que arrebentaria quem quer que fosse o rival. Gritou e esmurrou a mesa com tampo de mármore. Até mesmo o tipo entristecido que ocupava lugar ao fundo do salão levantou a cabeça para saber o que estava acontecendo.
Com sua habitual calma, o Doutor Margaride repreendeu o sobrinho de Dona Patrocínio. Disse que ele se expressara de modo inapropriado... Ainda mais por se tratar de cavalheiro e moço comedido. Advertiu-o de que não se pode sair por aí a dizer que se rebenta as pessoas. Depois acrescentou que o seu rival no testamento era simplesmente Jesus Cristo.
(...)
Aos
poucos, o doutor conseguiu explicar que na época em que Teodorico cursava o
último ano em Coimbra, Dona Patrocínio manifestou sua intenção de “deixar a sua
fortuna, terras e prédios, a irmandades de sua simpatia e a padres de sua
devoção”.
Depois de ouvir,
Teodorico sentenciou que estava perdido... Olhou para o tipo ao fundo do salão
e o viu como se enxergasse a si mesmo após a morte da Titi... O que seria dele?
Certamente só teria motivos para lamentar as “dores da vida”. Provavelmente
ficaria como aquele tipo e, à noite, se recolheria a algum estabelecimento para
afogar as mágoas com uma garrafa de aguardente qualquer.
(...)
Teodorico
pensava sobre essas coisas quando o Doutor Margaride terminou o seu chá com
torradas. O doutor se dispôs a dizer que nem tudo estava perdido e que não era
improvável que a Dona Patrocínio mudasse de ideia. Acrescentou que, além do
mais, ele vinha se comportando muito bem. Fazia companhia para ela, lia jornal
e rezava com ela!
O doutor salientou
que obviamente Teodorico jamais poderia deixar de considerar o quanto o seu
rival era forte e “digno de todo respeito”.
(...)
Mas que situação
difícil!
O
Doutor Margaride completou o seu raciocínio afirmando que Jesus padeceu por
todos e que o Estado reconhecia a Sua religião como oficial... Talvez a saída
para o rapaz fosse a de convencer à tia de que transmitir-lhe a fortuna era o
mesmo que “deixá-la à Santa Madre Igreja”.
Os dois se retiraram
do Martinho... Já na rua, o doutor quis saber a opinião de Teodorico sobre a
torrada do estabelecimento... Como que para agradar o magistrado, o moço
respondeu que não havia melhor torrada em toda Lisboa...
O relógio do Carmo acusava meia-noite quando os dois se despediram.
(...)
Conforme seguia pela
Rua Nova-da-Palma, Teodorico pensava nas palavras do Doutor Margaride... Sua
situação não era das mais tranquilas, pois definitivamente a tia Patrocínio
desejava deixar para a Igreja a fortuna que ela recebera por herança do Comendador
Godinho.
O que seria de sua vida sem o suporte de toda riqueza da Titi?
Também não saía de seu pensamento as considerações que o Margaride
fizera sobre a possibilidade de a tia Patrocínio vê-lo como um “parente
iluminado” e a altura dos padres e irmandades consagrados à Igreja Católica.
O que fazer?
O mais indicado seria
dar a entender que sua devoção era das mais fervorosas... Pelo visto não
bastava acompanhar a tia durante os terços à Nossa Senhora do Rosário! Todos os
seus gestos anteriores haviam sido em vão!
A partir de então deveria mostrar-se “beato extremado”. Seus gestos
deveriam revelar uma “alma que arde e deseja a penitência” mais do que a tudo.
Precisava
alcançar um conceito mais do que favorável da tia Patrocínio. Era preciso que
ela o visse como “santo”!
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_24.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto