sexta-feira, 8 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – domingos de visita à Titi; austera formação religiosa x tentações carnais; mais sobre os padres Casimiro e Pinheiro; José Justino e seu ofício de tabelião junto à casa

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_42.html antes de ler esta postagem:

É bom que se saiba que foram feitas correções em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_12.html.

O episódio na estalagem (quando ouviu a conversa do Gonçalves com o senhor Matias a respeito da “inglesa do barão”, passou por ela no corredor e teve os pensamentos invadidos por sua imagem e perfume durante a noite) marcou o que podemos chamar de “primeira tentação da carne” que aconteceu ao Teodorico.
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Os registros sobre suas memórias da época da infância salientam a rigorosidade religiosa do cotidiano da tia Maria do Patrocínio. A sisudez da mulher era resultado de suas convicções na doutrina católica. O casarão no Campo de Santana frequentado por padres era como que uma extensão da igreja.
Dona Maria do Patrocínio das Neves só enxergava a possibilidade de salvação para o sobrinho órfão a partir de sua conversão espiritual. Desde que o recebera tratou-o com todo rigor. Ela não tinha a menor ideia de que as “tentações da carne” se tornariam uma constante na vida do menino.
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Provavelmente a partir das orientações dos religiosos mais próximos, Dona Maria do Patrocínio decidiu que Teodorico devia ingressar no colégio em Santa Isabel aos nove anos...
Como vimos, o interno Crispim sentiu-se atraído por ele e em várias oportunidades o assediava. Talvez a fragilidade do pequeno Teodorico o impedisse de resistir, mas não se pode garantir que ele desprezasse completamente o outro.

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Uma vez por mês a criada Vicência aparecia no internato. Ela o buscava para passar o dia com a tia Patrocínio... Era sempre num domingo. Após a missa, certo Isidoro Júnior examinava seu asseio, principalmente as condições de seus ouvidos e unhas. Diversas vezes este tipo se enfurecia e o ensaboava reclamando da sujeira “sebosa”. Depois, quando estava para entregá-lo à criada, chamava-o de “querido amiguinho” ao mesmo tempo em que transmitia à Vicência seus cumprimentos à Dona Maria do Patrocínio.
No caminho, Teodorico observava o movimento das ruas... Olhava com atenção o caminhar das mulheres em suas vestimentas de seda e à caminho da igreja do Loreto, no Largo do Chiado... Uma loja exibia uma estampa em que se podia ver uma loira num ousado ensaio “recostada numa pele de tigre” e segurando com seus dedos finos um fio de pérolas... A nudez o remetia em pensamentos à “inglesa do barão”.
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Os domingos passados no casarão eram marcados pela monotonia.
Logo que chegava, Teodorico cumprimentava a tia beijando-lhe a mão... Na sequência, os dois se posicionavam na rica saleta onde podiam ser apreciadas “litografias coloridas com ternas passagens da vida puríssima de São José”, o santo de devoção da Titi.
O menino permanecia por um bom tempo a folhear os exemplares de “Panorama Universal”... A tia, com semblante e indumentária permanentemente austeros, sentava-se junto à janela, mantinha os pés numa manta e analisava com atenção um caderno de contas.
Invariavelmente às três horas guardava o caderno e passava perguntar sobre “doutrina” ao sobrinho... Teodorico respondia às questões, recitava o “Credo” e os Mandamentos. Fazia isso sem levantar o olhar... Conhecia o “cheiro acre e adocicado a rapé e a formiga” da beata...
Esse ritual não variava... Podemos imaginar a sisudez da mestra, seu cheiro “de entorpecer” e a circunspeção exigida pelos temas discorridos pelo menino.
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Os padres Casimiro e Pinheiro sempre apareciam para almoçar... O risonho Casimiro o abraçava e gostava de tomar-lhe lições de latim. Depois da sabatina tecia elogios ao seu talento. O padre Pinheiro limitava-se a falar bem do colégio dos Isidoros, seu rigor e padrão de ensino comparável aos melhores da Europa (nem a Bélgica possuía estabelecimento parecido!).
O padre Pinheiro era mesmo um tipo entristecido e sempre desconfiado com as condições da própria saúde. Tinha o costume de posicionar-se em frente ao espelho para analisar demoradamente a língua.
Durante o jantar, o padre Casimiro incentivava o Teodorico a comer mais dos apetitosos pratos servidos por Maria do Patrocínio... O Pinheiro dizia que os jovens eram felizes por não terem problemas de “repetir a vitela”... Apalpava o estômago e começava uma falação sobre doenças com a dona da casa.
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Era sempre assim... Depois caía a tarde e nas ruas acendiam os candeeiros a gás. Quase que automaticamente a Vicência colocava o seu xale xadrez para levar o Teodorico de volta ao colégio.
À saída sempre encontravam o senhor José Justino... Ele retirava o paletó, fazia uma graça ao garoto, cumprimentava a criada perguntando-lhe a respeito da saúde de Dona Patrocínio.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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