Aquele bem podia ser um momento de oração...
Quase que espontaneamente uma ave-maria chegava-lhe aos lábios. Mas seus pensamentos foram preenchidos pela imensidão do céu iluminado pelas estrelas... O vasto mar estava mais além... Vislumbrou uma casa e duas palmeiras... O que mais Teodorico poderia desejar?
Conjecturou que logo que a tia Patrocínio morresse tomaria posse de sua riqueza e compraria a casa que lhe vinha ao pensamento.
Foi com sinceridade que passou a imaginar que poderia viver com a sua Maricocas pelo resto da vida... Se livraria de uma vez por todas dos rituais, ladainhas, novenas e demais orações católicas. E não faria caso das intrigas políticas e confusões que levavam os Estados à intolerância e à beligerância.
O que mais poderia desejar? Viveria com Mary, a amada luveira... O céu garantiria aquela luz maravilhosa... Da terra germinariam as flores que perfumariam o jardim e as suas vidas. Passaria os dias preguiçosamente e em vestes turcas. Fumaria o latakié (puro tabaco sírio, deve seu nome à cidade portuária de Latakia) e tocaria viola francesa... Uma felicidade só! Tudo isso e mais a companhia da Maricocas a dizer-lhe adulações e a chamá-lo “meu portuguesinho valente”.
(...)
Teodorico pensava
essas coisas...
Suspirou e abraçou com força a namorada sussurrando-lhe ao ouvido
palavras apaixonadas e provocativas. Mas em vez da entrega aos chamegos, a moça
ergueu seus olhinhos tristes... Desejou que Deus o protegesse na viagem que se
aproximava e que o mar estivesse propício à boa navegação.
Ele
se entristeceu porque sabia que em breve estaria longe da Mary luveira. Gemeu e
de sua boca escapou melancólico fado de saudade:
“Coa minh'alma aqui
te ficas,
Eu parto só com os
meus ais,
E tudo me diz,
Maricas,
Que não te verei
nunca mais”.
Topsius ouviu com atenção e quis saber se os versos pertenciam a
Camões... Sem esconder o pranto, Teodorico respondeu que pertenciam ao poeta
português Calcinhas, e que os decorara desde que os ouvira em certa paragem em
Dafundo.
(...)
O alemão recolheu-se e fez alguns apontamentos a respeito da informação
que seu companheiro de viagem acabara de lhe passar...
Teodorico cuidou de fechar a vidraça... Fugiu
dos olhares para fazer um “rápido sinal da cruz” no corredor... Depois retornou
para a Maricocas, para a sua última (e breve) noite de amor.
(...)
Na manhã seguinte,
bem cedo, o grego proprietário do Hotel das Pirâmides apareceu para comunicar
que a embarcação que os levaria para Israel os aguardava na baía.
Topsius madrugara e já estava pronto... Comia ovos com presunto e bebia
da cerveja numa bem servida caneca.
Teodorico
tomou o seu café no próprio quarto... Seus olhos acusavam a tristeza e as
lágrimas da despedida. A bagagem já estava devidamente afivelada... O
Alpedrinha cuidava de acomodar a roupa suja num saco de lona. Depois era só
partir e deixar Alexandria para trás.
Mary estava sentada
na beira da cama... Trazia o chapéu enfeitado de flores e tinha a fisionomia
entristecida. Observava a acomodação dos panos sujos e sentia que um pouco dela
mesma era empurrado para dentro do saco... Aquilo só podia ser sinal de adeus
definitivo.
Observou
que o namorado levava mesmo muita roupa suja... Ele respondeu apenas que
mandaria lavá-las em Jerusalém... Disse isso e colocou seus cordões com os
bentinhos no pescoço.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_46.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto