domingo, 15 de outubro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – uma casa, suas palmeiras, a doce companhia de Mary e uma “vida folgada e turca”; o fado da despedida na última noite apaixonada; Alexandria e tudo o mais ficarão para trás

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_97.html antes de ler esta postagem:

Aquele bem podia ser um momento de oração...
Quase que espontaneamente uma ave-maria chegava-lhe aos lábios. Mas seus pensamentos foram preenchidos pela imensidão do céu iluminado pelas estrelas... O vasto mar estava mais além... Vislumbrou uma casa e duas palmeiras... O que mais Teodorico poderia desejar?
Conjecturou que logo que a tia Patrocínio morresse tomaria posse de sua riqueza e compraria a casa que lhe vinha ao pensamento.
Foi com sinceridade que passou a imaginar que poderia viver com a sua Maricocas pelo resto da vida... Se livraria de uma vez por todas dos rituais, ladainhas, novenas e demais orações católicas. E não faria caso das intrigas políticas e confusões que levavam os Estados à intolerância e à beligerância.
O que mais poderia desejar? Viveria com Mary, a amada luveira... O céu garantiria aquela luz maravilhosa... Da terra germinariam as flores que perfumariam o jardim e as suas vidas. Passaria os dias preguiçosamente e em vestes turcas. Fumaria o latakié (puro tabaco sírio, deve seu nome à cidade portuária de Latakia) e tocaria viola francesa... Uma felicidade só! Tudo isso e mais a companhia da Maricocas a dizer-lhe adulações e a chamá-lo “meu portuguesinho valente”.
(...)
Teodorico pensava essas coisas...
Suspirou e abraçou com força a namorada sussurrando-lhe ao ouvido palavras apaixonadas e provocativas. Mas em vez da entrega aos chamegos, a moça ergueu seus olhinhos tristes... Desejou que Deus o protegesse na viagem que se aproximava e que o mar estivesse propício à boa navegação.
Ele se entristeceu porque sabia que em breve estaria longe da Mary luveira. Gemeu e de sua boca escapou melancólico fado de saudade:

“Coa minh'alma aqui te ficas,
Eu parto só com os meus ais,
E tudo me diz, Maricas,
Que não te verei nunca mais”.

Topsius ouviu com atenção e quis saber se os versos pertenciam a Camões... Sem esconder o pranto, Teodorico respondeu que pertenciam ao poeta português Calcinhas, e que os decorara desde que os ouvira em certa paragem em Dafundo.
(...)
O alemão recolheu-se e fez alguns apontamentos a respeito da informação que seu companheiro de viagem acabara de lhe passar...
Teodorico cuidou de fechar a vidraça... Fugiu dos olhares para fazer um “rápido sinal da cruz” no corredor... Depois retornou para a Maricocas, para a sua última (e breve) noite de amor.
(...)
Na manhã seguinte, bem cedo, o grego proprietário do Hotel das Pirâmides apareceu para comunicar que a embarcação que os levaria para Israel os aguardava na baía.
Topsius madrugara e já estava pronto... Comia ovos com presunto e bebia da cerveja numa bem servida caneca.
Teodorico tomou o seu café no próprio quarto... Seus olhos acusavam a tristeza e as lágrimas da despedida. A bagagem já estava devidamente afivelada... O Alpedrinha cuidava de acomodar a roupa suja num saco de lona. Depois era só partir e deixar Alexandria para trás.
Mary estava sentada na beira da cama... Trazia o chapéu enfeitado de flores e tinha a fisionomia entristecida. Observava a acomodação dos panos sujos e sentia que um pouco dela mesma era empurrado para dentro do saco... Aquilo só podia ser sinal de adeus definitivo.
Observou que o namorado levava mesmo muita roupa suja... Ele respondeu apenas que mandaria lavá-las em Jerusalém... Disse isso e colocou seus cordões com os bentinhos no pescoço.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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