quinta-feira, 2 de novembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – louca caçada à Ruby em meio à confusão de romeiros compenetrados em sua visita aos locais santos; relíquias e procissões; seguindo os passos da Paixão até o Calvário; uma descrição da capela local a partir das memórias do Raposo; histeria e coleta de ofertas; fuga atordoada

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_31.html antes de ler esta postagem:

A iniciativa de Teodorico resultou em traumática...
Não foi nada fácil percorrer o ambiente repleto de gente... Esbarrou e tropeçou em muitos tipos que sequer o notaram. Todos ali tinham suas atenções voltadas às próprias preces e meditações. Ao cheiro do incenso e à fumaça juntavam-se indecifráveis gemidos que tornavam a atmosfera tensa e incompreensível.
(...)
Era com dificuldade que identificava algo que caracterizasse a origem dos romeiros... Aqui um franciscano e seu hábito característico... Noutra parte, vários que trajavam panos brancos lançavam-se ao chão... Junto a uma coluna estava um homem completamente nu... Indiferente a todos, este dormia estirado sobre a laje.
Mais adiante um padre copta e seu barulhento grupo de cristãos que não abandonavam “as pandeiretas sagradas do tempo de Osíris”... Esses não eram os únicos responsáveis pelos sons que preenchiam o espaço... Teodorico registrou que ouviu mesmo um “clamor sacro de um órgão” e cânticos armênios.
O português deparou-se com dois sacristãos (um grego e outro latino) que se atracavam numa ferrenha discussão próxima a um altar... Ao menos sua chegada foi providencial para que se apartassem.
A incursão pela área onde os romeiros pareciam mais emocionados com o Santo Sepulcro levou-o a topar uns russos descabelados que traziam os pés envolvidos em trapos... Esses tipos mantinham-se imóveis e tinham o semblante carregado de “terror divino”, torciam os gorros com as duas mãos sem abandonar seus rosários de contas de vidro.
(...)
Em meio a crianças que pediam esmolas e outras que brincavam insensíveis ao que ocorria ao seu redor, sacerdotes se dedicavam a atrair cristãos exibindo relíquias que julgavam exclusivas “heroicas ou divinas”... Alguns expunham pequeno fragmento de cana verde... Mas havia relíquias mais graúdas...
Teodorico garantiu ter visto “as esporas de Godofredo”!
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Como não podia deixar de ser, o percurso atordoou o português...
De repente notou uma procissão repleta de véus pretos... Achou que viu “as duas penas de gaivota” entre aqueles panos penitentes. Por isso integrou-se ao grupo.
Uma religiosa carmelita guiava as devotas e devotos que prosseguiam respondendo à ladainha rezada por ela. Os que a seguiam tinham de parar diante de algumas portas que davam acesso a pequenas “capelas cavernosas”. Cada uma marcava um dos passos da Paixão... Havia a “capela do Impropério”, onde Cristo foi flagelado, a “capela da Túnica”, onde Nosso Senhor foi despido, e assim por diante...
Todos os passos foram percorridos... Então a procissão dirigiu-se a uma precária escada cujos patamares foram esculpidos na própria rocha. Se não fossem as tochas que os penitentes passaram a levar, a subida se daria na mais completa escuridão.
O caminhada tornou-se ainda mais dramática... Os fiéis deixavam escapar gritos de horror. A maioria chorava e gemia o pranto dos que participam de um velório. Clamavam pela misericórdia de Deus ao mesmo tempo em que se flagelavam... Enfim alcançaram o alto da pedra do Calvário.
(...)
Teodorico conheceu a capela que guardava este local sagrado... Ele entendeu que o luxo, “sensual e pagão”, contrariava a precariedade dos fiéis e a balbúrdia que traziam. A respeito do esplendor interior, ele destacou que no teto “brilhavam sóis de prata, signos do zodíaco, estrelas, asas de anjos, flores de púrpura; e, dentre este fausto sideral, pendiam de correntes de pérolas os velhos símbolos da fecundidade, os ovos de avestruz, ovos sacros de Astarté (provavelmente Astarte, deusa fenícia) e de Baco de ouro”.
Também o altar mereceu as considerações do Raposo... Ali notou a cruz vermelha e o “Cristo tosco pintado a ouro”. A fumaça, os lampejos e a vibração dos sons causavam a estranha impressão de que a imagem estivesse dotada de vida.
Havia muitas joias ornamentando as colunas e paredes... Globos espelhados repercutiam o brilho dessas preciosidades por todo o ambiente, e mais impressionantemente sobre o pedestal da cruz.
O chão era revestido de mármore branco... Mas uma abertura permitia que os beatos romeiros contemplassem a rocha do Monte Calvário onde ocorrera o martírio de Nosso Senhor. De tão polida que se tornara devido aos incontáveis beijos e afagos dos cristãos de séculos passados, a pedra exposta pela fenda havia perdido muito de sua condição bruta.
Um religioso grego de barbas maltratadas vociferou que foi naquela rocha que fincaram a cruz... E prosseguiu com um “Miserere! Kyrie Eleison! Cristo! Cristo!" A partir de então as rezas se tornaram mais chocantes, ardente e marcadas por soluços... Na sequência a fumaça proveniente dos turíbulos levou os fiéis a um sofrido cântico de penitência.
Diáconos recolhiam moedas oferecidas pelos pobres quando Teodorico sentiu-se atordoado. Foi então que decidiu escapar do local o mais rápido que pôde.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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