A iniciativa de Teodorico resultou em traumática...
Não foi nada fácil percorrer o ambiente repleto de gente... Esbarrou e tropeçou em muitos tipos que sequer o notaram. Todos ali tinham suas atenções voltadas às próprias preces e meditações. Ao cheiro do incenso e à fumaça juntavam-se indecifráveis gemidos que tornavam a atmosfera tensa e incompreensível.
(...)
Era com dificuldade que
identificava algo que caracterizasse a origem dos romeiros... Aqui um
franciscano e seu hábito característico... Noutra parte, vários que trajavam panos
brancos lançavam-se ao chão... Junto a uma coluna estava um homem completamente
nu... Indiferente a todos, este dormia estirado sobre a laje.
Mais adiante um padre copta e seu barulhento grupo de cristãos que não
abandonavam “as pandeiretas sagradas do tempo de Osíris”... Esses não eram os
únicos responsáveis pelos sons que preenchiam o espaço... Teodorico registrou
que ouviu mesmo um “clamor sacro de um órgão” e cânticos armênios.
O português
deparou-se com dois sacristãos (um grego e outro latino) que se atracavam numa ferrenha
discussão próxima a um altar... Ao menos sua chegada foi providencial para que se
apartassem.
A incursão pela área
onde os romeiros pareciam mais emocionados com o Santo Sepulcro levou-o a topar
uns russos descabelados que traziam os pés envolvidos em trapos... Esses tipos mantinham-se
imóveis e tinham o semblante carregado de “terror divino”, torciam os gorros
com as duas mãos sem abandonar seus rosários de contas de vidro.
(...)
Em meio a crianças
que pediam esmolas e outras que brincavam insensíveis ao que ocorria ao seu
redor, sacerdotes se dedicavam a atrair cristãos exibindo relíquias que
julgavam exclusivas “heroicas ou divinas”... Alguns expunham pequeno fragmento
de cana verde... Mas havia relíquias mais graúdas...
Teodorico garantiu ter visto “as esporas de Godofredo”!
(...)
Como
não podia deixar de ser, o percurso atordoou o português...
De repente notou uma
procissão repleta de véus pretos... Achou que viu “as duas penas de gaivota” entre
aqueles panos penitentes. Por isso integrou-se ao grupo.
Uma religiosa carmelita
guiava as devotas e devotos que prosseguiam respondendo à ladainha rezada por
ela. Os que a seguiam tinham de parar diante de algumas portas que davam acesso
a pequenas “capelas cavernosas”. Cada uma marcava um dos passos da Paixão... Havia
a “capela do Impropério”, onde Cristo foi flagelado, a “capela da Túnica”, onde
Nosso Senhor foi despido, e assim por diante...
Todos os passos foram
percorridos... Então a procissão dirigiu-se a uma precária escada cujos
patamares foram esculpidos na própria rocha. Se não fossem as tochas que os
penitentes passaram a levar, a subida se daria na mais completa escuridão.
O caminhada tornou-se
ainda mais dramática... Os fiéis deixavam escapar gritos de horror. A maioria
chorava e gemia o pranto dos que participam de um velório. Clamavam pela misericórdia
de Deus ao mesmo tempo em que se flagelavam... Enfim alcançaram o alto da pedra
do Calvário.
(...)
Teodorico conheceu a capela que guardava este local sagrado... Ele
entendeu que o luxo, “sensual e pagão”, contrariava a precariedade dos fiéis e
a balbúrdia que traziam. A respeito do esplendor interior, ele destacou que no
teto “brilhavam sóis de prata, signos do zodíaco, estrelas, asas de anjos,
flores de púrpura; e, dentre este fausto sideral, pendiam de correntes de
pérolas os velhos símbolos da fecundidade, os ovos de avestruz, ovos sacros de
Astarté (provavelmente Astarte, deusa fenícia) e de Baco de ouro”.
Também o altar mereceu as considerações do Raposo... Ali notou a cruz
vermelha e o “Cristo tosco pintado a ouro”. A fumaça, os lampejos e a vibração
dos sons causavam a estranha impressão de que a imagem estivesse dotada de
vida.
Havia muitas joias ornamentando as colunas e
paredes... Globos espelhados repercutiam o brilho dessas preciosidades por todo
o ambiente, e mais impressionantemente sobre o pedestal da cruz.
O chão era revestido
de mármore branco... Mas uma abertura permitia que os beatos romeiros
contemplassem a rocha do Monte Calvário onde ocorrera o martírio de Nosso
Senhor. De tão polida que se tornara devido aos incontáveis beijos e afagos dos
cristãos de séculos passados, a pedra exposta pela fenda havia perdido muito de
sua condição bruta.
Um religioso grego de
barbas maltratadas vociferou que foi naquela rocha que fincaram a cruz... E
prosseguiu com um “Miserere! Kyrie Eleison! Cristo! Cristo!" A partir de
então as rezas se tornaram mais chocantes, ardente e marcadas por soluços... Na
sequência a fumaça proveniente dos turíbulos levou os fiéis a um sofrido cântico
de penitência.
Diáconos
recolhiam moedas oferecidas pelos pobres quando Teodorico sentiu-se atordoado.
Foi então que decidiu escapar do local o mais rápido que pôde.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto