Topsius não admitiu o modo como Teodorico se referiu à sua Alemanha... Por isso resmungou que seu país era “a mãe espiritual dos povos”... Depois quis ensinar que a humanidade era guiada pelo “brilho que sai do capacete alemão”.
O português debochou... Na sequência esbravejou que, para ele, aquela conversa era puro sebo... “Sebo para o capacete!” Ele mesmo não precisava de guias. Ele, um Raposo! Os Raposos tinham história no Alentejo! Tinham somente Nosso Senhor Jesus Cristo como guia. Concluiu dizendo que em Portugal havia homens grandiosos (citou Afonso Henriques, Herculano...).
Após o desabafo, Teodorico levantou-se dando a entender que ia se retirar... Via-se que Topsius estava abalado... Então Pote interveio dizendo que os amigos cristãos deviam reatar a paz. E aconteceu mesmo que, ao se cruzarem no divã, os dois apertaram as mãos.
(...)
Esse
pequeno entrevero ocorreu enquanto a dona Fatmé prosseguiu dizendo que Alá é
grande e que ela estava ali para servi-los como escrava. A mulher emendou que
se estivessem dispostos a lhe pagarem sete piastras (moeda da Península
Itálica) de ouro poderia substituir a Rosa de Jericó por uma beldade,
verdadeira joia do norte do Cáucaso (uma circassiana; da Circássia, cujo povo
sofreu um massacre imposto pelos russos nos anos 1860), “mais branca que a lua
cheia, mais airosa que os lírios que nascem em Galgalá”.
Empolgado, Teodorico
gritou que se interessava pela circassiana, pois estava ali exatamente para se “refocilar”.
Insistiu com Pote para que pagasse logo as piastras.
O
guia providenciou o pagamento e no mesmo instante a dona Fatmé retirou-se...
(...)
Logo uma portinha
branca se abriu e do outro lado surgiu uma pequena mulher trajando “amplos calções
turcos de seda carmesim” seguros por uma liga dourada... Seus pesinhos brancos mal
se encaixavam nos chinelinhos amarelos... Na cabeça trazia um véu que envolvia
também peitos e braços... Notava-se que Fatmé a ornamentara com algumas
joias...
Teodorico encheu-se
de desejo no mesmo instante em que identificou os olhos negros da moça. Fatmé
colocou-se atrás de sua pombinha e começou a levantar lentamente o véu... Assim
todos puderam contemplar a recompensa prometida.
Mas o que viram foi
motivo de decepção... A moça tinha “um carão cor de gesso, escaveirado e
narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres”. Pote irritou-se e saltou do divã
ao mesmo tempo em que proferia impropérios contra Fatmé.
A mulher clamou por
Alá, lamentou a situação e retirou-se rapidamente da sala. A circassiana ainda
tentou obter alguma paga... Mostrava os dentes podres ao sorrir e pedia
presentinhos aos clientes estrangeiros. Via-se que estava embriagada...
Teodorico a repeliu com repugnância e foi sem jeito que ela voltou a baixar o
véu para sair.
(...)
Sem esconder sua decepção, o português disse ao Topsius que aquilo era
uma “grande infâmia”.
O alemão proferiu umas palavras a respeito do que certas aparências
carregadas de volúpia escondem: “Debaixo do sorriso luminoso está o dente
cariado. Dos beijos humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a
alma entristece”...
Teodorico não estava interessado em
considerações de profundidades existenciais... Que alma qual nada! Em sua
opinião, a única lição que se tirava dali era o desaforo pelo qual tinham
passado. E acrescentou que, se o episódio tivesse ocorrido na Rua do
Arco-do-Bandeira (em Lisboa), a dona Fatmé teria tomado boas bofetadas.
Após este desabafo,
Pote reapareceu... Coçava os bigodes quando disse que se estivessem dispostos a
pagar mais nove piastras de ouro, a dona da casa se dispunha a apresentar-lhes
uma “maravilha secreta”, “uma virgem das margens do Nilo, da alta Núbia, bela
como a noite mais bela do Oriente”...
Pote
garantiu ter ele mesmo visto a beldade que, sem dúvida, valia o tributo.
Ansioso pela aventura, Teodorico pagou as nove moedas.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_10.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto