segunda-feira, 20 de novembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – outro devaneio; após a bebedeira, Teodorico adormeceu pesadamente e foi despertado às pressas por Topsius; o português não percebeu que retornaram ao passado narrado pelo Evangelho

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_32.html antes de ler esta postagem:

Em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_20.html foram feitas algumas considerações sobre o longo devaneio do protagonista enquanto a embarcação se aproximava da Palestina. Talvez seja interessante retomá-las também.

A narrativa que segue dá início ao relato de outro delírio experimentado por Teodorico... Sem dúvida este é dos mais polêmicos porque o levou à Jerusalém do dia da Paixão de Cristo.


(...)

Teodorico dormiu profundamente...
Seus registros dão conta de que umas duas horas depois certa claridade trêmula penetrou em sua tenda... Uma voz cheia de lamentos o chamou ordenando para que se levantasse e partisse para Jerusalém.
Ele se assustou... Puxou a manta e esforçou-se para visualizar quem o despertava... Viu Topsius que se orientava na escuridão à luz de uma delicada vela... Pôde notar a mesa repleta de garrafas que haviam esvaziado horas antes.
O alemão estava pronto para cavalgar e apressava o amigo português garantindo que tinha antecipado a arrumação das éguas. Avisou que no dia seguinte celebrava-se a Páscoa e que tinha a intensão de entrar em Jerusalém no início da manhã. Teodorico protestou e quis saber se era mesmo necessário partir daquela maneira brusca... Não tinham sequer os alforjes organizados! Sairiam sem dar a menor satisfação aos demais?
Topsius vestia uma capa branca... Abriu os braços e explicou que o dia que estava para nascer correspondia a 15 do mês de Nizam... O companheiro português devia saber que “desde que as tribos voltaram da Babilônia” para aquelas paragens não ocorrera nenhum outro dia tão excepcional.
O alemão esclareceu que precisava estar em Jerusalém para assistir aos acontecimentos que marcavam páginas especiais do Evangelho. Sua intenção era a de passar a Páscoa na casa de certo Gamaliel. Este era amigo de Hilel (um antigo conhecido de Topsius), versado em grego, patriota e “membro do Sanedrim (Sinédrio).
Ainda a respeito de Hilel, Topsius acrescentou que houve certa ocasião em que este afirmou que "para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma autoridade"...
Depois dessas justificativas, o erudito Topsius voltou a apressar Teodorico. O português passou então a calçar as botas apropriadas para a inesperada cavalgada.
(...)
A luz avermelhada dava sinais de que não duraria muito mais... Teodorico teve tempo apenas de agasalhar-se com o manto árabe... Sequer apanhou o relógio ou a faca espanhola que mantinha sob o travesseiro durante as noites.
Calculou que devia ser meia-noite... Na atmosfera havia um perfume de pomar e flor de laranjeira. Ao longe alguns cães latiam... Talvez defendessem a propriedade de seus donos.
No instante mesmo em que montou, o rapaz notou que o céu estava esplendoroso... Sobre o Monte Nebo via uma estrela de luz branca e faiscante. Admirou-a e pensou se ela não tinha um segredo qualquer para revelar-lhe.
Da direção da fonte do Eliseu vinha o clarão das estrelas da Síria... Aquilo possibilitava visualizar brancas muralhas de uma cidade nova com seus templos cercados por bosques... Desde uma de suas altas torres uma chama podia ser notada... Pontas de lanças brilhantes... Uma das construções que se destacavam certamente era o aqueduto. As fortalezas que a protegiam era referência também para a aldeia adormecida em meio às palmeiras.
Topsius estava engajado nos preparativos da partida. Teodorico sabia que o companheiro podia informar a respeito daquela visão embranquecida pela luz das estrelas... Perguntou e no momento em que iniciavam a marcha o alemão respondeu que se tratava de Jericó.
(...)
O começo da viagem foi marcado pelo silêncio...
Teodorico notou que a estrada era bem conservada, revestida de “lajes negras de basalto”... Bem superior aos caminhos que levavam a Canaã...
E não era só isso... Além da estrada, as pedras do caminho e a “palpitação das estrelas” pareciam bem diferentes.
Tudo se mostrava diferente. O próprio Teodorico se sentia diferente!
Faíscas escapavam das ferraduras das éguas... Insensível, Topsius se concentrava na marcha...
Sua capa branca se agitava conforme trotavam. Era como se carregasse duas bandeiras que tremulavam ao sabor da ventania.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,


Prof.Gilberto

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