Enquanto caminhava, Teodorico pensava que, naquele mesmo momento, Adélia talvez estivesse aos beijos com o amante em sua alcova... Possivelmente se recordassem dele e o chamassem “carola”.
A tia Patrocínio certamente estava toda de preto e a caminho da missa de Santana... Distante dali estava o estabelecimento do Montanha, onde os criados preparavam sossegadamente as mesas para os clientes que tinham o bilhar como passatempo.
O Doutor Margaride devia estar acomodado no apartamento na Praça da Figueira... Devidamente equipado com seus óculos lia o “Diário de Notícias”.
Não sentia a falta de nenhum desses conhecidos... Era de Lisboa que sentia saudade.
É claro que não havia como se esquecer que a viagem levara-o a conhecer Maricoquinhas... Teodorico sabia o quanto isso lhe era precioso... Então pensou no que sua doce Mary estaria fazendo naquele instante... Talvez dedicando-se ao vaso de magnólias... Junto a ela estaria o gato dorminhoco no aconchegante veludo da cadeira. Bem podia ser que ela ainda suspirasse pelo “portuguesinho valente”.
Esse último pensamento levou-o a suspirar também... O fado que cantarolava fez-se mais triste.
(...)
De repente, viu-se
num local desértico... Não conseguiu definir o quanto se distanciara do
acampamento... Solidão e melancolia o dominaram... O ambiente o entristeceu um
pouco mais.
É que à sua volta
estavam pequenos montes desprovidos de qualquer vegetação. O caso é que tudo
ali o levava a se sentir como que em refúgio propício aos mais radicais ascetas.
Tudo
ali parecia arranjado para proteger o arbusto raro e repugnante que avistou.
Não foi por acaso que no mesmo instante em que o viu, Teodorico esqueceu-se completamente
do que vinha cantarolando desanimadamente.
O arbusto tinha um
tronco grosso e parecia encravado na areia. Sua casca” tinha o lustre oleoso de
uma pele negra”... Da parte alta lhe escapavam galhos viscosos, enegrecidos, contorcidos
e espinhentos.
Era repugnante... Mas
devia ter sua significância... Apesar do estranho aspecto, a árvore estava
viva. O português tirou o capacete como que a render-lhe homenagem... Talvez
fosse uma espécie ilustre!
Quem sabe? Talvez, de seu nono galho, um centurião romano tivesse
extraído o fragmento utilizado para moldar a coroa que colocaram na cabeça de
um carpinteiro da Galileia que havia sido condenado “por andar, entre quietas
aldeias e nos santos pátios do templo, dizendo-se filho de Davi e dizendo-se
filho de Deus, a pregar contra a velha religião, contra as velhas instituições,
contra a velha ordem, contra as velhas formas!”
(...)
Mas é claro que um galho daqueles só podia ter se tornado divino!
Os altares cristãos o evidenciavam... Multidões
de prostravam à passagem das imagens do Cristo flagelado e sarcasticamente
coroado de espinhos!
Desde os tempos de “colégio
dos Isidoros”, Teodorico aprendera (nas palestras de terças e sábados do “sebento
Padre Soares”) que em determinada paragem da Judeia havia certa árvore que “era
mesmo de arrepiar”.
Para o Raposo aquele estranho arbusto era a “sacratíssima árvore de
espinhos”! Mas só podia ser!
(...)
A
ideia que lhe veio à cabeça foi a de recolher um daqueles galhos (o mais “penugento
e espinhoso”) para levá-lo à tia Patrocínio... Essa seria sua “relíquia fecunda
em milagres”... A velha se apegaria com toda devoção àquela “santa relíquia”...
Certamente uma das mais significativas!
Ela o teria na mais
alta das considerações, já que o enviara à romagem salientando que esperava
apenas uma “santa relíquia” dos santos lugares... E isso se ele mesmo
considerasse que ela merecesse algo pelo que até então fizera por sua pessoa.
Teodorico
não se esquecera disso... Foi “diante da magistratura e dos eclesiásticos” que
ela lhe dissera aquelas palavras sem conter a lágrima que escorregou por trás
de seus “óculos austeros”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_71.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto