O negociante de hortaliças prosseguiu em sua falação oferecendo os dois figos por “um bom traphik”... No mesmo instante, Teodorico protestou por considerar injusto o valor anunciado (correspondia a dois tostões da moeda portuguesa). Vociferou que o homem podia retirar-se e chamou-o de ladrão. Mas logo sugeriu pagar uma dracma pela quantidade de figos “que coubessem no forro largo de um turbante”...
O homem considerou que a oferta o ofendia, e estava pronto para proferir uma série de impropérios ao mesmo tempo em que invocaria os profetas de sua religião, quando Topsius interveio. O alemão disse que o negociante era “ruidoso e vazio como o odre cheio de vento”, mas, sendo Jeová grande, oferecia uma moeda de ferro, um meah que trazia um lírio aberto em uma de suas faces, por todos os figos que estavam no cesto.
Era “pegar ou largar”... Topsius emendou que conhecia o caminho que dava em belos pomares... Disse que sabia dos que eram banhados pelas águas de Enrogel (da fonte Em-Rogel)...
O homem percebeu que estava sendo dispensado, então levantou-se no parapeito e encheu de figos a ponta do manto que Teodorico ajeitou... Na sequência sorriu e disse que os clientes eram "mais benéficos que o orvalho do Carmelo”.
(...)
Teodorico
e Topsius ocuparam-se dos figos de Betfagé... A saborosa merenda os sustentaria
na sequência da jornada. Mas aconteceu que mal se ajeitaram no mesmo trecho do
parapeito da galeria do palácio, outro negociante se posicionou onde antes
estivera o vendedor de figos e folhas...
Este outro tipo era um
velho magro, de olhar profundo e humilde... Assim que o notou, Teodorico sentiu
o impulso de jogar-lhe uns figos “e uma moeda de prata dos Ptolomeus”.
Mas a fragilizada
criatura apressou-se a tirar uma reluzente pedra do meio dos farrapos que
cobriam o seu peito. A pedra havia sido trabalhada e nela via-se uma imagem do
templo... Estava claro que o velho era um artesão que vivia de decorar pedras
como aquela para vendê-las aos peregrinos.
Topsius
examinou o objeto... O velho retirou muitas outras variadas pedras (mármore,
ônix, jaspe...)... Cada uma com uma gravura ou inscrição diferente (tabernáculo
no deserto, nomes de tribos, figuras diversas em relevo, cenas de batalhas...).
O homem cruzou os
braços e aguardou que os potenciais compradores analisassem sua mercadoria.
Topsius cravou que o tipo só podia vir das bandas da Pérsia... Pelo visto era
hábil na confecção daqueles artigos. Podia ser um adorador do fogo como tantos
de sua região, que realizavam peregrinações até o Egito.
O alemão salientou
que era comum os persas percorrerem o longo trajeto descalços, levando fachos
acesos. E que eles sacrificavam galos negros, cujo sangue derramavam sobre a
grande esfinge.
(...)
O velho ouviu
horrorizado a interpretação do estrangeiro... Logo que pôde negou tudo e passou
a explicar sua verdadeira história.
Disse que era pedreiro em Naim... Por um bom tempo trabalhou em obras no
templo e também nas construções projetadas em Bezeta por Herodes Antipas.
Contou que muito havia sofrido com o tratamento desumano dispensado pelos
intendentes aos operários, que muitas vezes eram açoitados.
Por causa daqueles infortúnios, seus músculos arrebentaram... Doente e
sem forças, não conseguiu trabalhar mais. Para piorar ainda a situação, tinha
de dar de comer à filha e aos netos... Foi por isso que passou a sair à procura
de pedras especiais pelos montes.
Seu
ofício desde então tornara-se aquele... Gravava nomes santos, esculpia relevos
representando locais sagrados para vender no templo.
(...)
A história do velho
tornou-se ainda mais dramática no ponto em que ele explicou que, na véspera da
Páscoa, certo Rabi da Galileia apareceu cheio de cólera e tirou-lhe o
ganha-pão...
O
homem disse isso e apontou para o lado onde se aglomeravam em torno de Jesus.
Teodorico quis saber como que aquele Rabi, “de coração divino e amigo dos
pobres”, poderia proporcionar-lhe dor e injustiça.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/12/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_30.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto