O frade que cuidava do jardim parou de mexer com as plantas... Depois passou a andar de um lado para outro por um caminho repleto de murtas enquanto lia o seu livro de orações.
Teodorico sentia-se muito bem e a pensar positivamente sobre o seu futuro logo que retornasse a Portugal e entregasse a valiosa relíquia para a Titi. Extasiado, passou a traçar planos para a casa em Santana...
Assim que o cadáver de Dona Maria do Patrocínio fosse retirado da casa, ele correria ao oratório. Apagaria as luzes e deixaria as imagens todas na mais completa escuridão... Não sobraria nenhum ramo dos que ela costumava arranjar! Sim! Essa seria a sua desforra por todas as inúmeras vezes que teve de se ajoelhar diante daquelas “imagens pintadas”... Após a morte da velha se sentiria, enfim, libertado das beatitudes exigidas pelos santos de cada dia.
(...)
Ter
fingido por tantos anos não havia sido fácil... Esmerara-se em tudo parecer um
fiel servo dos santos, mas, como sabemos, seu procedimento tinha como última
intenção “servir à tia”...
É interessante notar
que o rapaz raciocinava como se a morte dela fosse certeira... Então, ele
alimentou a ideia de que bastava retornar e entregar a relíquia para que sua
felicidade se completasse na sequência.
Enquanto
pensava, fazia pouco caso do modo de ser da Titi... De que lhe servira todo
rigor carola? Em breve estaria apodrecendo na cova... Aqueles olhos que nunca
derramaram “uma lágrima caridosa” serviriam de “pasto para os vermes”... Ela,
que nunca sorria, teria a pele e os lábios desfeitos pela putrefação... Só
então, dentro do caixão, seus dentes cariados ficariam expostos como num
macabro sorriso.
Para Teodorico não
havia dúvida... A fortuna que fora do comendador Godinho já era praticamente
sua. Uma vez libertado da mulher que lhe causava tanta repugnância, não teria
mais a menor necessidade de ajoelhar-se diante dos santos ou ofertar-lhes
ramalhetes...
O que faria depois?
Partiria para Paris, onde poderia divertir-se muito com as mulheres.
(...)
De repente, o frade bateu
levemente no ombro do visitante retardatário...
O velho sorriu-lhe e disse
que estava na hora de fechar o “santo horto”. Acrescentou que ficaria grato se
recebesse uma esmola... Teodorico entregou-lhe uma “placa”... Depois pegou o
caminho de volta para Jerusalém.
Enquanto caminhava
pelo Vale de Josafate, cantarolava um doce fado.
(...)
Na tarde do dia seguinte, Topsius, Teodorico e seus assistentes
organizaram-se na saída do Hotel Mediterrâneo... Desde a Igreja da Flagelação
ouvia-se o sino que chamava fiéis para a novena.
O beduíno vestira-se sobriamente, lembrava um sacristão e parecia que
estava bem gripado. Teodorico conferiu os caixotes... Os que continham
relíquias foram acomodados entre fardos, sobre o cavalo mais robusto.
Topsius assumiu sua montaria, a mais vagarosa
das éguas... O animado Teodorico enfeitou o próprio casaco com uma rosa
vermelha na altura do peito. Assim que passaram pela Via-Dolorosa gritou um "Fica-te,
pocilga de Sião!"
Alcançavam a Porta de
Damasco quando ouviram gritos vindos desde a “esquina do convento dos
abissínios”... Ninguém menos do que o funcionário negro do hotel vinha
esbaforido e carregando um embrulho.
Teodorico reconheceu, pelo papel pardo e fita vermelha, que só podia ser
o camisão de Mary... Só então ele se lembrou que, enquanto organizava as malas,
não o havia visto no guarda-roupa junto com as meias.
O funcionário
explicou que logo que eles deixaram o hotel, ele pôs-se a limpar o quarto. Ao passar
a vassoura atrás da cômoda, descobriu o “embrulhinho” no meio da poeira e
aranhas... Solícito, limpou-o com todo carinho e, como sempre fora prestativo
ao “fidalgo lusitano”, correu em disparada (ainda que estivesse “sem a jaleca”)
para alcançá-lo.
Teodorico
não escondeu sua irritação, fez uma fisionomia carrancuda e vociferou um “basta!”...
Na sequência, depois de pegar o embrulho, dispensou o moço dando-lhe umas
moedas de cobre.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto