sábado, 10 de março de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – caminhada pelo jardim e encontro com o Crispim dos tempos de Colégio dos Isidoros; desabafos sobre os descaminhos às “profundas sociais”; uma proposta de ocupação remunerada

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_64.html antes de ler esta postagem:

Foi no quarto da pobre hospedaria da Travessa da Palha que Teodorico ouviu a “voz de sua consciência”... Ela “desmaterializou-se” e voltou a interiorizar-se em seu ser.
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Sua alma ainda sofria o impacto da estupenda revelação acerca da inutilidade de sua hipocrisia...
Consultou-a convicto de que, de fato, não acreditava “que Jesus fosse filho de Deus e de uma mulher casada de Galileia (como Hércules era filho de Júpiter e de uma mulher casada da Argólida)”... Mesmo assim encerrou a prece ao “encarnado Nosso Senhor Jesus Cristo” que havia iniciado.

(...)

No dia seguinte, Teodorico resolveu visitar o jardim de São Pedro de Alcântara. Fazia muitos anos, desde a época dos estudos de latim, que não pisava naquele sítio...
Percorria os canteiros quando se deparou com o Crispim, colega dos tempos do Colégio confessional dos Isidoros... Aquele mesmo que o enchia de beijos pelos corredores e lhe escrevia bilhetinhos com promessas de pequenos presentes (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_8.html).
Como se esquecer daquele tipo loiro, filho do senhor Teles empresário do ramo de fiação na Pampulha? Os dois não se viam desde que Teodorico retornara de Coimbra, onde concluíra o curso de Direito.
O velho Teles Crispim havia falecido e o rapaz herdara a companhia... Ao trocarem o tradicional abraço, Teodorico pressentiu que o outro o estivesse considerando "muitíssimo feio". De sua parte, sabia que estava lidando com um tipo rico, o “Crispim & Cia”...
(...)
O pouco que conversaram foi suficiente para que o Raposo notasse o quanto o Crispim valorizava a sua romagem à Terra Santa, que ele sabia pelos artigos publicados no “Jornal das Novidades”. O distinto homem também revelou satisfação ao dar a entender que imaginava que o amigo havia herdado “grossa maquia” da senhora Patrocínio das Neves.
Sem esconder amargura, Teodorico mostrou-lhe as surradas botas e, depois que se acomodaram num banco próximo a umas roseiras, contou-lhe sua desventura marcada pelos embrulhos trocados, a camisa que cheirava a pecado e a falsa relíquia... Não escondeu a vergonha que tinha passado no oratório e também como fora punido pela velha, que lhe deixara apenas o óculo do comendador Godinho de herança.
Teodorico desabafou sobre sua real condição de hóspede no miserável quarto localizado na Travessa da Palha.
(...)
O quadro que Teodorico traçou a respeito de si mesmo era dos mais deprimentes... O Crispim passou a vê-lo como o esfomeado que não tem expectativa sobre quando voltará a mastigar uma merenda.
O rapaz mostrou-se impressionado... Torceu os bigodes e disse que no país ninguém passava fome... Emendou que a religião levava os mais abastados a praticarem a caridade... Referiu-se também à “Carta” (provavelmente a Constituição do país), dando a entender que os mais necessitados recebiam assistência.
Depois, de modo descontraído, disse que a ninguém faltava “uma fatia de pão”... Acrescentou que era certo que alguns reclamavam da falta de queijo. Então deu uma palmada no joelho do antigo conhecido salientando que ele mesmo poderia oferecer-lhe o queijo.
(...)
Na sequência, Crispim revelou que tivera de demitir um funcionário do escritório da Pampulha... Explicou que o tipo dera para escrever versos e a “meter-se com atrizes”, pousou de republicano e passou a falar mal da Igreja e das “coisas santas”.
A firma não podia manter o achincalhador entre seus empregados... Então havia aquela vaga no escritório e ele a ofereceu ao Teodorico, que tinha letra boa e possuía habilidades matemáticas...
Esse era o “queijo” que o empresário podia oferecer ao velho conhecido: um salário de vinte e cinco mil-réis.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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