Foi no quarto da pobre hospedaria da Travessa da Palha que Teodorico ouviu a “voz de sua consciência”... Ela “desmaterializou-se” e voltou a interiorizar-se em seu ser.
(...)
Sua alma ainda sofria
o impacto da estupenda revelação acerca da inutilidade de sua hipocrisia...
Consultou-a convicto de que, de fato, não acreditava “que Jesus fosse
filho de Deus e de uma mulher casada de Galileia (como Hércules era filho de
Júpiter e de uma mulher casada da Argólida)”... Mesmo assim encerrou a prece ao
“encarnado Nosso Senhor Jesus Cristo” que havia iniciado.
(...)
No
dia seguinte, Teodorico resolveu visitar o jardim de São Pedro de Alcântara. Fazia
muitos anos, desde a época dos estudos de latim, que não pisava naquele
sítio...
Percorria os
canteiros quando se deparou com o Crispim, colega dos tempos do Colégio confessional
dos Isidoros... Aquele mesmo que o enchia de beijos pelos corredores e lhe
escrevia bilhetinhos com promessas de pequenos presentes (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_8.html).
Como
se esquecer daquele tipo loiro, filho do senhor Teles empresário do ramo de
fiação na Pampulha? Os dois não se viam desde que Teodorico retornara de Coimbra,
onde concluíra o curso de Direito.
O velho Teles Crispim
havia falecido e o rapaz herdara a companhia... Ao trocarem o tradicional
abraço, Teodorico pressentiu que o outro o estivesse considerando "muitíssimo
feio". De sua parte, sabia que estava lidando com um tipo rico, o “Crispim
& Cia”...
(...)
O pouco que
conversaram foi suficiente para que o Raposo notasse o quanto o Crispim valorizava
a sua romagem à Terra Santa, que ele sabia pelos artigos publicados no “Jornal
das Novidades”. O distinto homem também revelou satisfação ao dar a entender
que imaginava que o amigo havia herdado “grossa maquia” da senhora Patrocínio
das Neves.
Sem esconder amargura, Teodorico mostrou-lhe as surradas botas e, depois
que se acomodaram num banco próximo a umas roseiras, contou-lhe sua desventura
marcada pelos embrulhos trocados, a camisa que cheirava a pecado e a falsa
relíquia... Não escondeu a vergonha que tinha passado no oratório e também como
fora punido pela velha, que lhe deixara apenas o óculo do comendador Godinho de
herança.
Teodorico desabafou sobre sua real condição de hóspede no miserável
quarto localizado na Travessa da Palha.
(...)
O quadro que Teodorico traçou a respeito de si
mesmo era dos mais deprimentes... O Crispim passou a vê-lo como o esfomeado que
não tem expectativa sobre quando voltará a mastigar uma merenda.
O rapaz mostrou-se
impressionado... Torceu os bigodes e disse que no país ninguém passava fome... Emendou
que a religião levava os mais abastados a praticarem a caridade... Referiu-se
também à “Carta” (provavelmente a Constituição do país), dando a entender que
os mais necessitados recebiam assistência.
Depois, de modo descontraído, disse que a ninguém faltava “uma fatia de
pão”... Acrescentou que era certo que alguns reclamavam da falta de queijo.
Então deu uma palmada no joelho do antigo conhecido salientando que ele mesmo
poderia oferecer-lhe o queijo.
(...)
Na
sequência, Crispim revelou que tivera de demitir um funcionário do escritório
da Pampulha... Explicou que o tipo dera para escrever versos e a “meter-se com atrizes”,
pousou de republicano e passou a falar mal da Igreja e das “coisas santas”.
A firma não podia
manter o achincalhador entre seus empregados... Então havia aquela vaga no
escritório e ele a ofereceu ao Teodorico, que tinha letra boa e possuía
habilidades matemáticas...
Esse
era o “queijo” que o empresário podia oferecer ao velho conhecido: um salário
de vinte e cinco mil-réis.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_95.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto