A tragédia que Teodorico vivia estava relacionada diretamente à troca dos embrulhos... Descuidou do fato de serem semelhantes no formato, nas fitas e terem papéis idênticos. Mas estiveram bem separados! O da camisa fora colocado na gaveta do armário, enquanto que o da coroa de espinhos ficara sobre a cômoda, entre os dois castiçais!
O infeliz alimentava a convicção de que ninguém tocara no precioso pacote. Nem ele, Pote ou Topsius*... Então só podia ser alguém com “mãos invisíveis”! Alguém muito poderoso que, alimentando um tremendo ódio contra a sua pessoa, “trocara miraculosamente os espinhos em rendas”. Dessa forma o desastre foi provocado... A tia o deserdou, e ele foi atirado “para sempre nas profundas sociais”.
* Somos tentados a pensar que o alemão Topsius tivesse motivos para tramar a troca dos embrulhos. Evidentemente isso não ficou totalmente descartado por ocasião do pequeno desentendimento que tiveram pouco antes de se retirarem da Palestina. (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da.html e http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_3.html)
(...)
Teodorico
permaneceu esbravejando sua indignação até que deu com os olhos na litogravura
do Cristo de olhos claros e arregalados... No mesmo instante disparou que só
podia ter sido Ele o responsável pela troca que o arruinou. Só mesmo Cristo
podia ter transformado a coroa em camisa imunda... Fez isso diante dos olhos da
velha Patrocínio! A questão era: por quê?
Ele não conseguia
encontrar resposta... Não se lembrava de nenhuma atitude, pronunciamento ou
pensamento que justificasse tamanha perseguição. Deus só podia ser “ingrato e
variável”! Alguém teria sido tão perfeitamente devotado quanto ele?
Frequentador das melhores missas dominicais em seus panos pretos, alimentava-se
apenas de bacalhau e azeite às sextas-feiras para agradá-Lo! E o que dizer das
infindáveis horas de rezas do terço no oratório? Seus joelhos tornaram-se doloridos!
Como
explicar que um cristão tão devotado a decorar as mais complexas rezas, e a
dedicar-se a enfeitar os altares com as mais belas flores, tenha sido punido
daquela forma pelo Senhor?
(...)
Inconformado, o rapaz
repuxava a barba... Aproximou-se da imagem de tal modo que seu desabafo embaçou
o vidro... Depois, tresloucado e como se estivesse a repreender alguém que
muito o magoara, ordenou que a imagem o olhasse bem... Perguntou se o seu rosto
não era familiar... Acaso não o conhecia de séculos atrás? Referiu-se ao átrio
de mármore onde certo pretor de Roma presidira um julgamento... Pois ele,
Teodorico Raposo, se recordava do “Rabi de província amarrado com cordas”.
O rapaz seguiu falando que ele O conhecera no momento em que sofreu o
mais ultrajante desprezo... Mais do que ninguém, ele podia dizer que
presenciara fatos nos dias em que os tempo gloriosos da Igreja eram
impensáveis.
E mais! Sentenciou que todos os que se prostravam aos pés das ricas
imagens, como havia sido o caso de Dona Patrocínio e de todos os seus amigos,
teriam agido agressivamente “como os vendilhões do templo, os fariseus e a
populaça de Acra” no julgamento perante Pilatos...
Teodorico insistiu que o que havia presenciado
em nada se comparava à religiosidade de seu tempo... O final de século que
vivia estava marcado por procissões e festividades religiosas marcadas pela
escolta da imagem de Nosso Senhor por soldados... Magistrados levavam às grades
os que O ousavam desacatar e renegar, e ricas famílias faziam questão de ver
seus nomes relacionados às festas de dias santos mais concorridas.
Ele tinha convicção
de que militares, juízes e ricos proprietários não pestanejariam se vivessem os
dias da Paixão... Eles se colocariam junto aos que O acusaram de “inimigo da
ordem” e exigiram Sua morte, pois O consideravam um “perigo social”.
Ao final da catarse, Teodorico cravou que naquele dia do julgamento seu
coração estivera compadecido e que, pelo menos ele, estremecera com toda
humilhação imposta ao Nosso Senhor.
E era por isso que
não podia entender por que estava sendo perseguido...
Por
que tudo fora arranjado para que a tia o deserdasse?
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto