quinta-feira, 8 de março de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – incerteza a respeito da troca dos embrulhos e angústia profunda; desabafo sobre a injustiça divina

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_5.html antes de ler esta postagem:

A tragédia que Teodorico vivia estava relacionada diretamente à troca dos embrulhos... Descuidou do fato de serem semelhantes no formato, nas fitas e terem papéis idênticos. Mas estiveram bem separados! O da camisa fora colocado na gaveta do armário, enquanto que o da coroa de espinhos ficara sobre a cômoda, entre os dois castiçais!
O infeliz alimentava a convicção de que ninguém tocara no precioso pacote. Nem ele, Pote ou Topsius*... Então só podia ser alguém com “mãos invisíveis”! Alguém muito poderoso que, alimentando um tremendo ódio contra a sua pessoa, “trocara miraculosamente os espinhos em rendas”. Dessa forma o desastre foi provocado... A tia o deserdou, e ele foi atirado “para sempre nas profundas sociais”.

                  * Somos tentados a pensar que o alemão Topsius tivesse motivos para tramar a troca dos embrulhos. Evidentemente isso não ficou totalmente descartado por ocasião do pequeno desentendimento que tiveram pouco antes de se retirarem da Palestina. (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da.html e http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_3.html)


(...)
Teodorico permaneceu esbravejando sua indignação até que deu com os olhos na litogravura do Cristo de olhos claros e arregalados... No mesmo instante disparou que só podia ter sido Ele o responsável pela troca que o arruinou. Só mesmo Cristo podia ter transformado a coroa em camisa imunda... Fez isso diante dos olhos da velha Patrocínio! A questão era: por quê?
Ele não conseguia encontrar resposta... Não se lembrava de nenhuma atitude, pronunciamento ou pensamento que justificasse tamanha perseguição. Deus só podia ser “ingrato e variável”! Alguém teria sido tão perfeitamente devotado quanto ele? Frequentador das melhores missas dominicais em seus panos pretos, alimentava-se apenas de bacalhau e azeite às sextas-feiras para agradá-Lo! E o que dizer das infindáveis horas de rezas do terço no oratório? Seus joelhos tornaram-se doloridos!
Como explicar que um cristão tão devotado a decorar as mais complexas rezas, e a dedicar-se a enfeitar os altares com as mais belas flores, tenha sido punido daquela forma pelo Senhor?
(...)
Inconformado, o rapaz repuxava a barba... Aproximou-se da imagem de tal modo que seu desabafo embaçou o vidro... Depois, tresloucado e como se estivesse a repreender alguém que muito o magoara, ordenou que a imagem o olhasse bem... Perguntou se o seu rosto não era familiar... Acaso não o conhecia de séculos atrás? Referiu-se ao átrio de mármore onde certo pretor de Roma presidira um julgamento... Pois ele, Teodorico Raposo, se recordava do “Rabi de província amarrado com cordas”.
O rapaz seguiu falando que ele O conhecera no momento em que sofreu o mais ultrajante desprezo... Mais do que ninguém, ele podia dizer que presenciara fatos nos dias em que os tempo gloriosos da Igreja eram impensáveis.
E mais! Sentenciou que todos os que se prostravam aos pés das ricas imagens, como havia sido o caso de Dona Patrocínio e de todos os seus amigos, teriam agido agressivamente “como os vendilhões do templo, os fariseus e a populaça de Acra” no julgamento perante Pilatos...
Teodorico insistiu que o que havia presenciado em nada se comparava à religiosidade de seu tempo... O final de século que vivia estava marcado por procissões e festividades religiosas marcadas pela escolta da imagem de Nosso Senhor por soldados... Magistrados levavam às grades os que O ousavam desacatar e renegar, e ricas famílias faziam questão de ver seus nomes relacionados às festas de dias santos mais concorridas.
Ele tinha convicção de que militares, juízes e ricos proprietários não pestanejariam se vivessem os dias da Paixão... Eles se colocariam junto aos que O acusaram de “inimigo da ordem” e exigiram Sua morte, pois O consideravam um “perigo social”.
Ao final da catarse, Teodorico cravou que naquele dia do julgamento seu coração estivera compadecido e que, pelo menos ele, estremecera com toda humilhação imposta ao Nosso Senhor.
E era por isso que não podia entender por que estava sendo perseguido...
Por que tudo fora arranjado para que a tia o deserdasse?
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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