Teodorico abraçou o antigo conhecido... Duas lágrimas rolaram em suas faces... Crispim fez uma careta e com bom humor protestou que o amigo estava bem feio.
(...)
Logo começou o
trabalho no escritório da fábrica na Pampulha... A rotina era perfeitamente
suportável ao Teodorico: sempre bem vestido, cuidava de copiar cartas com sua
letra marcada por formosas curvas... O mais era o preenchimento do livro de
Caixa.
Teve de exercitar a “regra de três” para facilitar os cálculos e
proceder aos registros... E tanto se dedicou ao ofício que em pouco tempo
reconheceu que havia aprendido muito sobre o “negócio da fiação". O Crispim
observou-lhe que, além da competência para os compêndios do Direito, suas
aptidões “para as coisas sérias” saltavam aos olhos.
(...)
Foi
numa tarde de sábado do mês de agosto que o patrão chegou à sua carteira e lhe
perguntou sobre qual missa costumava frequentar...
Crispim estava risonho
e trazia um belo charuto... Acrescentou que no domingo iria com a irmã à missa
de Santos, na Ribeira, onde a família tinha propriedade. Queria saber se
Teodorico era muito apegado à missa que costumava frequentar, pois era com
gosto que o convidava.
A
missa começaria às nove... Almoçariam no Hotel Central e de lá embarcariam para
Cacilhas. Crispim não escondeu que queria apresentar-lhe a irmã.
(...)
No mesmo instante,
Teodorico refletiu sobre o Crispim & Cia, um tipo conservador, que achava
que a religião era “indispensável à sua saúde, à sua prosperidade comercial, e
à boa ordem do país”... Visitava assiduamente o Senhor dos Passos da Graça e
era filiado à Irmandade de São José.
Evidentemente um tipo
como ele não poderia suportar o antigo funcionário, que passou a escrever textos
elogiosos a Renan num periódico republicano, o “Futuro”. O demitido costumava
ultrajar o sacramento da Eucaristia!
(...)
Teodorico sentiu o ímpeto de dizer que frequentava religiosamente à
missa na igreja da Conceição-Nova, e que não se sentiria bem em faltar à
próxima celebração.
Mas aconteceu que se lembrou da voz de sua consciência no quarto da
Travessa da Palha... No mesmo momento abandonou a mentira que já lhe
contaminava os lábios. Então foi com firmeza que respondeu que jamais ia às
missas... Disse que elas não passavam de patranhas e que não acreditava que o
corpo de Deus estivesse “todos os domingos num pedaço de hóstia feita de farinha”...
Na sequência arrematou que “Deus não tem corpo, nunca teve” e, sendo assim,
aquelas missas eram idolatrias e carolices.
(...)
Foi por isso que
finalizou dizendo que o patrão podia fazer o que bem entendesse. Ele
entenderia... Sabia que por um momento havia sido importante para a empresa,
mas, sendo o seu entendimento acerca da religião tão discrepante, a dispensa
seria compreensível (seu antecessor fora demitido por causas semelhantes!).
Mas aconteceu que Crispim gostou da franqueza do Raposo... Disse que
gostava de “gente lisa”... Revelou que o antigo funcionário mentia
descaradamente ao lhe pronunciar elogios ao papa... E que depois ia para os
bares falar absurdos sobre o Santo Padre.
Em
síntese, Crispim deixou claro que não tinha a menor importância... Seu antigo
conhecido e agora funcionário em seu escritório na Pampulha podia não ter
religião... Mas tinha cavalheirismo. E isso lhe bastava.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/03/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_12.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto