Depois que tropa e manada passaram pelo córrego da Fome, o Major Saulo permaneceu por um instante junto ao compadre João Manico...
Como de costume, o patrão fez comentários carregados de gracejos sobre a lamentável condição do outro, que seguia viagem montado no Sete-de-Ouros... João Manico foi educado e disse que sabia que o compadre não pretendia humilhá-lo ou deixá-lo em situação embaraçosa diante dos demais... Apesar de desabafar a respeito da incoerência de sua participação na viagem, e de salientar que a mesma consideração cabia ao burrico, fez umas apreciações positivas a respeito de sua montaria.
(...)
O
Major Saulo quis saber se ele achava que “burro é burro”...
João Manico respondeu
que aquela era uma pergunta séria e que, em sua opinião, os burros sempre foram
muito espertos.
(...)
Depois
da resposta de João Manico, há um parágrafo em que o autor destaca o “modo de
ser” do Sete-de-Ouros e de tantos outros burros que viviam nas fazendas onde
eram utilizados nas mais diversas tarefas.
Há tanta poesia no
fragmento que merece ser destacado aqui:
“Bem que Sete-de-Ouros se inventa, sempre no seu. Não a praça larga do
claro, nem o cavouco do sono: só um remanso, pouso de pausa, com as pestanas
meando os olhos, o mundo de fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de
dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as orelhas - espelhos da alma -
tremulando, tais ponteiros de quadrante, aos episódios para estrada, pela ponte
nebulosa por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem
perguntas, cada um no seu lugar, devagar, por todos séculos e seculórios,
mansamente amém”.
O Major Saulo
redarguiu sentenciando que, apesar de serem “ladinos demais” (os burros –
conforme a resposta de João Manico), não podiam imprimir velocidade às
marchas... Até se destacavam pela coragem, mas não se podia exigir rapidez
desses animais.
(...)
A manada se espalhou
pela várzea, mas apenas uns três animais se destacaram e se puseram a correr desajeitadamente
entre as moitas.
O major olhou e gostou do que viu... Felizmente estava tudo bem depois
do sufoco da passagem pelo córrego da Fome... Por isso deixou escapar mais um “Oô-ah!...
Beleza de gado!”.
João Manico concordou e o patrão prosseguiu dizendo que apreciava o
estado geral dos animais, seus graciosos movimentos e a bela carne que
renderiam. Na sequência exortou o compadre a deixar a tristeza para trás porque
mais tarde ele ainda teria uma grata surpresa.
Fosse o que fosse ele não podia adiantar...
Tinha a lamentar que Francolim ainda não retornara desde que seguira para a
dianteira para ter com Sebastião. Mas também isso ele podia adivinhar... O “imediato”
tinha essa mania de conferir o que os vaqueiros faziam, deixavam de fazer e o
que conversavam. Era de seu feitio ir-se por um caminho e retornar por outro...
Depois eram as falações sobre as novidades e fofocas contadas ao patrão.
De certo modo o rapaz
fazia as vezes de “olhos e ouvidos do patrão”... Mas nem sempre o Major Saulo
via isso positivamente... Além disso, muitas vezes a falação só atrapalhava.
O homem sorriu mais uma vez e comentou com o compadre que Francolim não era
dos que reparam devidamente a beleza do gado... Mas logo ele apareceria para
falar, e já era possível quase adivinhar o que diria: que os homens estavam “mamparreando”
e na prosa...
De sua
parte, o major entendia que eles tinham direito a um pouco de divertimento,
pois nos momentos em que se exigia força eles estavam sempre prontos...
Mas aquele era o
jeito do Francolim. Ele se sentia bem vigiando, era o gosto dele...
João
Manico disse que seu Francolim não era “certo da cabeça”... Naquele mesmo dia ele
havia colocado uma touca estranha na cabeça e ficou parecido com um fantasma!
O
major riu mais uma vez e filosofou dando a entender que não valia a pena
corrigir o “imediato”... Disse que “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é
maminha”, e finalizou com um “Galinha, tem de muita cor, mas todo ovo é branco”...
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/04/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_19.html
Leia: O
Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto