segunda-feira, 30 de abril de 2018

“O Burrinho Pedrês” – conto de “Sagarana” – de João Guimarães Rosa – o caso que João Manico tinha para contar datava de mais de vinte anos; avanço pelo sertão em busca de gado pestilento; o jovem Seu Saulinho e seu encanto pela “clarineta”; um pedido do sitiante sem braço

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/04/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_30.html antes de ler esta postagem:

Aquele mesmo que havia dito que nunca ouvira João Manico contar a história sobre o “estouro do gado” pelas terras do sertão, chamou Tote para que este confirmasse que, de fato, era por conversas que tivera com ele que sabia bem pouco do caso.
No mesmo instante João Manico se deu por vencido e disse que contaria a história já tantas vezes narrada por ele. Mas fazia isso porque não gostava de diz-que-diz envolvendo o seu nome. E também porque o compadre Sebastião insistia para que ele contasse novamente a história que se dera há mais de vinte anos.
(...)
João Manico deixou claro que era a última vez que contava sobre aqueles acontecimentos.
Os vaqueiros aproximaram as montarias e formaram um bloco compacto que seguia pela escura estrada... Os cavalos quase que se pisavam uns nos outros...
Manico foi avisando que não queria que se chegassem tão perto porque tinha o costume de cuspir de vez em quando conforme falava e podia sujar alguém sem querer.
Ele começou dizendo que era uma época em que não havia trem no arraial e nem casa de fazenda na Tampa. Logo um dos homens quis saber onde e para quem ele trabalhava... Era para o próprio Major Saulo, mas ele ainda era bem jovem, magro e conhecido como “Seu Saulinho”. Fazia pouco tempo que havia se casado e só possuía as terras do Retiro... Era dono também de “uns alqueires de pasto de brejo, no Pontilhão, que todo o mundo chamava só de Jatobá”...
(...)
Aconteceu que “Seu Saulinho” percorreu com seus homens os fundos do sertão... João Manico participou daquela empreitada e garantiu que chegaram “para trás dos Goiás”...
Explicou que aquilo foi uma necessidade, pois a peste tinha se espalhado pelas boiadas... Uma lástima como nunca se dera antes. Mas o pior é que arrebanharam um gado medonho, “mazelento e feioso”... Quase que não se salvava um sequer! Os bichos tinham o “focinho seco” e estavam tomados de carrapatos, bernes e bicheiras... Entre as unhas, os bois magros traziam frieiras esponjosas! Todos estavam meio doentes e procurando troncos de árvores para se coçarem!
Os homens ouviam com atenção e concluíam que aqueles estavam mais para bois do mato, sem dono... Todavia João Manico deixou claro que, apesar disso, os animais tinham índole feroz, pois faziam “arrelia” e tocaias para “matar gente”.
(...)
Avançaram tanto pelo sertão só para buscar um gado tão ordinário!
Pois foi isso mesmo o que aconteceu...
João Manico desabafou que se o dinheiro fosse seu jamais o desperdiçaria daquela maneira... Um refugo de gado! Mas “Seu Saulinho” tomava decisões sem consultar ninguém...
(...)
Aconteceu que chegaram a um sítio que pertencia a um tipo sem braço... Era pelas bandas de Paracatu... Logo que chegaram, uma vaca mestiça que estava no curral soltou um belo berro todo cantado e gemido só no final. Seu Saulinho estava tão animado que nem saltou do cavalo e já perguntou ao dono por quanto ele vendia a “clarineta”... O homem respondeu que a vendia por cem mil-réis... Então o patrão disse que pagava mais dez só pelo berro.
Um dos vaqueiros se intrometeu dizendo que gostou de ouvir aquilo... Era o tipo de atitude que “dava respeito”.
Manico observou que não havia necessidade daquele gasto. Naquela época era muito dinheiro... Depois retomou as críticas à boiada de péssima qualidade. Os vaqueiros que acompanhavam o Seu Saulinho andaram desgostosos.
(...)
Mas João Manico sabia que os homens queriam ouvir a respeito de outro assunto. Pior ainda era o menino a quem ele tratava por “pretinho”.
Os homens quiseram saber quem era esse “pretinho”... Manico respondeu que era um menino de uns sete anos, “um toquinho de gente preta”...
Aconteceu que o fazendeiro que vendeu a boiada pediu ao Seu Saulinho que levasse também o pretinho... Que fizesse o favor de entregá-lo a um irmão que vivia no Curvelo.
O jovem patrão prometeu fazer o que o homem lhe pedira... Manico disse aos homens que o menino tinha olhos graúdos e que a parte branca era de apavorar. Neste ponto de sua narrativa ele acrescentou que achava que “alguns pretos têm o branco-dos-olhos assim só para modo de assombrar a gente!”
O maior problema foi que o menino não parava de chorar... Seus gemidos eram de causar pena. Mas nenhum dos vaqueiros conseguia entretê-lo... O próprio João Manico tentou de todas as formas “agradar o desgraçadinho”.
Mas nada o fez parar de chorar.
Leia: O Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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