João Manico prosseguiu com sua narrativa...
Contou que a cantoria do pretinho era das mais sentidas e que ela fazia o gado desistir de pastar... Os animais se tornaram irrequietos. Em seus movimentos formavam redemoinhos e berravam de modo assustador... Era como se estivessem vendo “sangue de boi morto”.
Foi de repente que pararam com o berreiro... Para o Manico, eles não queriam atrapalhar a canção que o pretinho entoava. Sua cantoria era de lamento e ele soluçava de dor. A cantiga era “sorumbática”, era “desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim”.
Apesar disso, a cantiga era “linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada”... Um dos trechos dizia:
“Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão... “
(...)
A voz do garoto era forte e tremida... Machucava o
coração de quem o ouvia.
João Manico disse que um dos vaqueiros, Octaviano,
pediu para o jovem patrão interromper a cantoria do pretinho. Só que o Seu
Saulinho estava encantado... Ele até havia tirado de sua algibeira o retrato da
esposa enquanto o menino cantou!E não é só isso! Mesmo sem saber ler, o patrão ficou olhando as cartas que ela lhe escrevia. Ele gostava de receber as cartas dela e ficava por um bom tempo a contemplar as letras... Isso o alegrava!
Ao Octaviano, Seu Salinho disse que deviam deixar o garoto “chorar suas mágoas”, pois ele tinha a pobre alminha “entalada na garganta”.
João Manico se lembrou de que, na ocasião, ficou a recordar do pobre lugar onde havia nascido... Outro vaqueiro, o José Gabriel, prestou atenção à cadência da cantoria, cantarolou bem baixinho e passou a mexer os dedos como se tivesse um violão nos braços...
O vaqueiro Aristides tirou uns bons goles de sua garrafa de cachaça... Nenhum dos outros homens fez qualquer comentário porque viram que ele estava com os olhos cheios de lágrimas.
A cantiga triste do negrinho estava fazendo os rudes vaqueiros se tornarem sentimentais demais.
(...)
Era o pretinho parar para tomar fôlego e um ou outro boi gemia... Eles erguiam
a cabeça e pareciam procurar de onde vinha a sofrida cantiga.
Foi Binga quem comentou com o Manico que “boi
aquerenciado” (que tinha o “seu querer”; no caso o de retornar à antiga propriedade)
não se cansava de sofrer.
(...)
Por um bom tempo a
atmosfera foi dominada pela cantoria triste do menino pretinho...
João Manico se lembrou de que os vaqueiros ficaram como que hipnotizados
e sonolentos... Ele mesmo notou uma estrela cadente e fez um pedido ao “anjo da
graça” na intenção de um dia “voltar com saúde” para a casa onde vivera “lá nas
baixadas bonitas do Rio Verde”.
O
canto do pretinho embalou o sono que dominou a todos... João Manico disse que
sonhou “com uma trovoada medonha” e com uma boiada feia em carreira doida... Sobre
o cachaço de um dos marruaz, ele viu um menino preto a cantar... Evidentemente
o sonho continha informações daquele fragmento de dia... De sua parte, os
vaqueiros que ouviam sua história quiseram saber se aquilo era uma premonição.
Então o Manico respondeu que já estava bem velho para saber.
Mas acrescentou que
havia quem acreditasse que sim, seu sonho havia sido uma “visão”... Em sua
opinião, porém, as pessoas tinham medo dessas coisas e acabavam sentenciando
que seu sonho daquela noite não tinha nada a ver com “revelações”. O que ele
mesmo podia dizer?
Sempre
que se lembrava do ocorrido, João Manico invocava a “Virgem Santa Mãe de Deus”...
Ele explicou que os gritos do patrão o acordaram de madrugada... O homem estava
apavorado, querendo saber do gado!
Os animais haviam
fugido! E o pior de tudo é que, na debandada, passaram por cima de Aristides e
Octaviano. Deles não sobrou nem o cadáver! Só se via um “bagaço vermelho”
totalmente pisoteado.
(...)
Um dos que o ouviam
naquela noite de retorno à fazenda da Tampa garantiu que já vira coisa
semelhante. O vaqueiro garantiu que quando um dos animais se assustava na
estrada os demais saíam em disparada... E muitas vezes nem tinha motivo! A
boiada partia “correndo por informação”!... Nesses casos, nem adianta querer
cercar os bichos que, desembestados, “derrubam paredes de tijolo e vão se
matando uns aos outros”.
Manico observou que a
pior das arrancadas era mesmo a do gado triste que tinha querência... “Boi apaixonado
vira fera”!
A saudade
neles devia ser mais doída do que a que as pessoas sentem.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/05/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de_6.html
Leia: O
Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto