sábado, 5 de maio de 2018

“O Burrinho Pedrês” – conto de “Sagarana” – de João Guimarães Rosa – a cantoria melancólica do pretinho; encantamento de gado e de vaqueiros; sonho “revelador” e trágica debandada dos animais; “boi apaixonado vira fera”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/05/o-burrinho-pedres-conto-de-sagarana-de.html antes de ler esta postagem:

João Manico prosseguiu com sua narrativa...
Contou que a cantoria do pretinho era das mais sentidas e que ela fazia o gado desistir de pastar... Os animais se tornaram irrequietos. Em seus movimentos formavam redemoinhos e berravam de modo assustador... Era como se estivessem vendo “sangue de boi morto”.
Foi de repente que pararam com o berreiro... Para o Manico, eles não queriam atrapalhar a canção que o pretinho entoava. Sua cantoria era de lamento e ele soluçava de dor. A cantiga era “sorumbática”, era “desfeliz que nem saudade em coração de gente ruim”.
Apesar disso, a cantiga era “linda, linda como uma alegria chorando, uma alegria judiada”... Um dos trechos dizia:


“Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão... “

(...)
A voz do garoto era forte e tremida... Machucava o coração de quem o ouvia.
João Manico disse que um dos vaqueiros, Octaviano, pediu para o jovem patrão interromper a cantoria do pretinho. Só que o Seu Saulinho estava encantado... Ele até havia tirado de sua algibeira o retrato da esposa enquanto o menino cantou!
E não é só isso! Mesmo sem saber ler, o patrão ficou olhando as cartas que ela lhe escrevia. Ele gostava de receber as cartas dela e ficava por um bom tempo a contemplar as letras... Isso o alegrava!
Ao Octaviano, Seu Salinho disse que deviam deixar o garoto “chorar suas mágoas”, pois ele tinha a pobre alminha “entalada na garganta”.
João Manico se lembrou de que, na ocasião, ficou a recordar do pobre lugar onde havia nascido... Outro vaqueiro, o José Gabriel, prestou atenção à cadência da cantoria,  cantarolou bem baixinho e passou a mexer os dedos como se tivesse um violão nos braços...
O vaqueiro Aristides tirou uns bons goles de sua garrafa de cachaça... Nenhum dos outros homens fez qualquer comentário porque viram que ele estava com os olhos cheios de lágrimas.
A cantiga triste do negrinho estava fazendo os rudes vaqueiros se tornarem sentimentais demais.
(...)
Era o pretinho parar para tomar fôlego e um ou outro boi gemia... Eles erguiam a cabeça e pareciam procurar de onde vinha a sofrida cantiga.
Foi Binga quem comentou com o Manico que “boi aquerenciado” (que tinha o “seu querer”; no caso o de retornar à antiga propriedade) não se cansava de sofrer.
(...)
Por um bom tempo a atmosfera foi dominada pela cantoria triste do menino pretinho...
João Manico se lembrou de que os vaqueiros ficaram como que hipnotizados e sonolentos... Ele mesmo notou uma estrela cadente e fez um pedido ao “anjo da graça” na intenção de um dia “voltar com saúde” para a casa onde vivera “lá nas baixadas bonitas do Rio Verde”.
O canto do pretinho embalou o sono que dominou a todos... João Manico disse que sonhou “com uma trovoada medonha” e com uma boiada feia em carreira doida... Sobre o cachaço de um dos marruaz, ele viu um menino preto a cantar... Evidentemente o sonho continha informações daquele fragmento de dia... De sua parte, os vaqueiros que ouviam sua história quiseram saber se aquilo era uma premonição. Então o Manico respondeu que já estava bem velho para saber.
Mas acrescentou que havia quem acreditasse que sim, seu sonho havia sido uma “visão”... Em sua opinião, porém, as pessoas tinham medo dessas coisas e acabavam sentenciando que seu sonho daquela noite não tinha nada a ver com “revelações”. O que ele mesmo podia dizer?
Sempre que se lembrava do ocorrido, João Manico invocava a “Virgem Santa Mãe de Deus”... Ele explicou que os gritos do patrão o acordaram de madrugada... O homem estava apavorado, querendo saber do gado!
Os animais haviam fugido! E o pior de tudo é que, na debandada, passaram por cima de Aristides e Octaviano. Deles não sobrou nem o cadáver! Só se via um “bagaço vermelho” totalmente pisoteado.
(...)
Um dos que o ouviam naquela noite de retorno à fazenda da Tampa garantiu que já vira coisa semelhante. O vaqueiro garantiu que quando um dos animais se assustava na estrada os demais saíam em disparada... E muitas vezes nem tinha motivo! A boiada partia “correndo por informação”!... Nesses casos, nem adianta querer cercar os bichos que, desembestados, “derrubam paredes de tijolo e vão se matando uns aos outros”.
Manico observou que a pior das arrancadas era mesmo a do gado triste que tinha querência... “Boi apaixonado vira fera”!
A saudade neles devia ser mais doída do que a que as pessoas sentem.
Leia: O Burrinho Pedrês – conto de Sagarana. Editora José Olympio.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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