domingo, 28 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – coletando e excluindo nomes de artistas secundários de “O Código Maldito” e “Passageiro Sem Bilhete”; um telefonema; discussão sobre curiosidade com o Senso Comum

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Antes de colocar “O Código Maldito” no aparelho de vídeo, Tertuliano repassou o final de “Quem Porfia Mata Caça” para copiar os nomes registrados nos créditos... Entre eles estava o do artista secundário cuja aparição estava transtornando sua existência. Se ao lado de cada nome masculino constasse também o papel de cada um no filme o trabalho do professor seria facilitado. Mas infelizmente não era assim.
A cada filme assistido, a intenção era a de fazer as anotações tendo o ator aparecido em alguma cena ou não... É claro que, relacionando todos os nomes, poderia comparar com a lista de “Quem Porfia Mata Caça”. Naturalmente nomes dos que atuaram em filmes onde o seu “retrato vivo” não tinha participação seriam eliminados até que restasse apenas o do próprio.
Neste ponto da escrita, Saramago faz um registro sobre o método e a organização de Tertuliano, algo que conservava “de família” e que mantinha o caos afastado.
(...)
E não é que o “retrato vivo” apareceu em “O Código Maldito”?
O tipo fazia o papel de um caixa de banco... Num trecho específico do filme ele sofria a ameaça de um assaltante armado... Provavelmente preocupado em fazer com que notassem seu talento, exagerou na reação de pânico... Na sequência, sob a feroz ameaça, abriu o cofre, retirou valores que colocou na bolsa do bandido.
Ele apareceu mais duas outras vezes... Primeiro respondendo perguntas feitas pela polícia... Depois quando o gerente o retirou da função devido ao trauma de enxergar potenciais assaltantes em todos os clientes.
Diferentemente da ocasião em que se chocou ao assistir ao “homem idêntico” em “Quem Porfia Mata Caça”, dessa vez Tertuliano estava calmo e mentalmente ocupado com sua metódica caçada ao nome... Fez os registros e constatou que podia eliminar apenas dois.
(...)
Ainda tinha tempo para dedicar ao próximo filme, o “Passageiro Sem Bilhete”. Não eram horas de jantar e, além disso, sequer sentia fome.
O “Passageiro Sem Bilhete” rodou até o final sem que se notasse participação do figurante... Não se pode dizer que Tertuliano perdeu tempo com este filme porque graças a ele alguns nomes das duas primeiras listas foram riscados.
E era assim mesmo, por exclusão, que chegaria ao nome do ator.
Afinal, o que pretendia com todo esse trabalho? Até este ponto não se tem ideia da intenção última do professor de História... Mas o seu primeiro objetivo estava tão longe de ser alcançado que o “segundo passo” podia ser pensado posteriormente.
(...)
O telefone tocou.
Tertuliano descartou a possibilidade de ser o colega de Matemática... Provavelmente fosse a insistente namorada... Também podia ser uma chamada da mãe que, vivendo no interior, procurava manter os laços com o filho professor na cidade grande.
O aparelho parou de tocar e o mecanismo da secretária eletrônica foi acionado automaticamente... Ele não esboçou nenhuma curiosidade. Em vez de ouvir a gravação, seguiu para a cozinha, preparou um lanche e serviu-se de mais uma cerveja.
(...)
Enquanto se alimentava, Tertuliano tentava pensar sobre os últimos acontecimentos... Era certo que seu cansaço mental impossibilitava o pleno exercício da consciência.
Não demorou e o Senso Comum reapareceu perguntando-lhe se estava feliz com a decisão que havia tomado...
O rapaz respondeu que o procedimento que adotara não tinha relação com busca da felicidade ou qualquer outro tipo de satisfação... Acrescentou que até onde sabia a felicidade não era criação do Senso Comum.
O Senso Comum explicou que a maioria das situações em que nos metemos só avança para circunstâncias complicadas quando nós mesmos as impulsionamos... O professor quis argumentar que a curiosidade levou-o a buscar outros filmes da produtora e a fazer a investigação.
A curiosidade não é condenável... O Senso Comum destacou que as atitudes curiosas tinham sua origem no próprio Senso Comum... Então se iniciou uma discussão, já que para Tertuliano aquilo era incompatível.
O Senso Comum deu como exemplo a invenção da roda... Apenas “uma enorme quantidade de senso comum é que teria sido capaz de a inventar”... Tertuliano quis saber, então a respeito da invenção da bomba atômica...
Sem dúvida grande quantidade se senso foi necessária para a construção do artefato bélico... Mas, de acordo com o Senso Comum, nesse caso da concepção de algo com tamanho poder de destruição, “não havia nada de comum no senso” utilizado por seus executores.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto 

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – mais seis fitas da produtora de “Quem Porfia Mata Caça”; títulos sugestivos, verdadeiras pérolas; na secretária eletrônica, mensagens da namorada e do professor de Matemática

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Tertuliano salientou que poderia levar cinco ou seis filmes no caso de o funcionário da locadora encontrá-los...
O moço respondeu que aquele total equivaleria a umas nove horas de sessão. Enquanto isso, o professor contemplava um cartaz que anunciava “A Deusa do Palco”, filme recente da produtora... Duvidou que o nome do artista, que era o seu “vivo retrato”, constasse da lista (em letras diminutas) localizada na parte de baixo.
Não demorou e seis títulos foram colocados sobre o balcão... O funcionário garantiu que a loja possuía outras fitas, mas em atendimento ao solicitado trouxe apenas aqueles.
Tertuliano aprovou. Explicou que no dia seguinte poderia passar para pegar os outros que fossem selecionados. O rapaz quis saber se podia encomendar outros, mas o professor insistiu que começaria seu estudo pelos filmes catalogados na locadora.
O funcionário fez o cálculo de cabeça e chegou a uma soma equivalente ao valor de venda... Tertuliano o corrigiu, pois sua intenção primeira era de alugá-los. Salientou que, no caso de encontrar o que procurava, podia comprar um ou até todos eles.
Tertuliano pagou e se despediu...
Nem bem o professor se retirou e o funcionário decepcionado por não ter vendido os outros filmes resmungou baixinho uma ofensa que envolvia o nome Tertuliano.
(...)
Nada que merecesse registros ocorreu no percurso entre a locadora e a casa...
É Saramago mesmo quem se diverte ao narrar que se tivesse de escrever sobre os pensamentos de seu protagonista talvez a escrita tomasse outra temática... Portanto, como o mais sensato é prosseguir na trama iniciada desde a primeira página do livro, é a ela que retornamos.
(...)
Além de sua pasta, o professor carregou o saco plástico com as seis fitas que pretendia assistir antes de dormir.
A questão era o seu interesse pelo ator secundário... Não tinha a menor ideia se o tipo apareceria em algum daqueles filmes, e muito menos em quais momentos... Se seu alvo fosse artista renomado, certamente a aparição ocorreria “às primeiras imagens”.
Tão logo entrou, pôs-se a organizar o ambiente... Depositou a pasta na escrivaninha e acomodou o saco com os vídeos ao lado. Trocou de roupa... A atmosfera era das melhores, merecia uma cerveja, e é por isso que ele foi à geladeira antes de dedicar-se à arrumação das fitas.
Os filmes foram dispostos lado a lado, do mais antigo para o mais recente. Dessa forma, o que ficou na primeira posição foi “O Código Maldito”, que era dois anos mais antigo do que “Quem Porfia Mata Caça”... Depois vinham “Passageiro Sem Bilhete”, “A Morte Ataca de Madrugada”, “O Alarme Tocou Duas Vezes”, Telefona-me Outro Dia” e “A Deusa do Palco”.
(...)
Manipulando o penúltimo filme teve o impulso de virar-se para o aparelho de telefone... Assim constatou que havia gravações na secretária eletrônica.
Acionou a reprodução e ouviu a bem conhecida voz feminina, que lamentou o fato de não se falarem a uma semana... Se ele pretendia terminar a relação, então era preferível que conversassem frente a frente... Haviam discutido, mas isso não era motivo para não se falarem... Ela ainda gostava dele... Despediu-se com "um beijo".
Na sequência, a mesma voz solicitava que retornasse a ligação assim que pudesse.
A terceira chamada era do colega de Matemática... Em síntese, o professor manifestou sua impressão sobre a conversa que haviam tido no corredor da escola... Não recordava nada que pudesse ter dito que o ofendesse... Sendo assim, deviam conversar novamente e se entender... Se algum mal-entendido ocorrera, antecipava-se a pedir desculpas... O telefonema em si já tinha essa finalidade.
Por incrível que pareça, Tertuliano já não se recordava plenamente do que se passara entre ele e o de Matemática.
Repassou as gravações e sorriu ao ouvir mais uma vez a voz da namorada.
Por algum motivo sentiu-se satisfeito...
Ainda trataremos a respeito de Maria da Paz por aqui.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – de volta à locadora; o professor de História comprou a fita que havia alugado e manifestou interesse por outros títulos da mesma produtora; ao funcionário explicou que fazia um “estudo” específico

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Sem dúvida a conversa que teve com o colega de Matemática antes de iniciar as aulas o intrigara ainda mais.
Ao que tudo indica, seu horário de almoço havia sido de reflexões a respeito dos rumos que daria ao caso da duplicidade. Durante a reunião, enquanto o professor explanava suas considerações a respeito dos documentos que versavam sobre a atualização das práticas docentes, pensou que naquela mesma tarde daria inicio a uma investigação.
Ao deixar a reunião pedagógica, Tertuliano rumou para a locadora de vídeos...
(...)
Passou os olhos pelas estantes abarrotadas de vídeos. Analisou mais detidamente uma e outra embalagem... Depois se aproximou do balcão, onde o mesmo funcionário que preenchera sua ficha de locação no dia anterior o atendeu.
Tertuliano anunciou que estava ali para comprar a fita que tinha alugado... O tipo lembrava-se perfeitamente do cliente de nome diferenciado e do título do filme. Solícito, sugeriu que devolvesse a fita e que levasse uma nova... Esclareceu que, devido ao uso contínuo das que são colocadas para a locação, sempre ocorre de imagem e som perderem um pouco da qualidade.
Tertuliano respondeu que não havia necessidade. Não estava com a fita no momento e, além disso, para o fim a que se destinava, a condição do produto era mais que satisfatória.
O funcionário estranhou que o cliente visse mais interesse numa cassete do que a mera reprodução. Evidentemente não manifestou a curiosidade... Disse que daria um desconto...
Tertuliano não prestava atenção ao que o rapaz dizia... Sabemos que seu interesse pela fita nada tinha a ver com pechincha. Perguntou se a loja possuía outros títulos da mesma produtora... O funcionário quis saber se ele procurava outros filmes do mesmo realizador.
O professor confirmou que tinha interesse de conhecer mais materiais da produtora... É claro que a observação era das mais estranhas. Por motivos óbvios, o rapaz não quis saber mais detalhes... Apenas esclareceu que fazia tempo que estava no ramo da locação de filmes e que o comum eram as pessoas aparecerem solicitando certos títulos, gêneros, atores... Raramente vinham atrás de filmes de diretores específicos...
Era a primeira vez que alguém mostrava interesse pela produtora. Tertuliano não tinha interesse de ouvir mais a respeito do mercado de locações de vídeos... Disse que talvez fizesse parte do grupo dos clientes mais raros. 
(...)
O funcionário concordou. No final das contas o que importava era a venda... O cliente devia sair satisfeito da loja... Lembrou-se que tivera vontade de rir do primeiro nome do professor... De posse da ficha de locação, tratou-o por Máximo Afonso... Assim Tertuliano havia assinado...
O rapaz estava tão concentrado em tratar bem ao excêntrico cliente que se esqueceu de sua demanda por mais filmes da mesma produtora... Tertuliano perguntou-lhe novamente a respeito, e dessa vez acrescentou os motivos de seu interesse. Disse que realizava “um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, em suma, os sinais ideológicos que uma determinada empresa produtora de cinema, descontando o grau efetivo de consciência com que o faça, vai, passo a passo, metro a metro, fotograma a fotograma, difundindo entre os consumidores”.
(...)
O funcionário arregalou os olhos... Espantou-se com a explicação do cliente sobre a necessidade de conhecer outros filmes da produtora. De fato, ali estava um tipo raro, que sabia expor razões fundamentadas e de modo apaixonado...
A eloquência a respeito de estudo ou ensaio era admirável... Mas o que importava era a venda... E não é que o projeto do excêntrico cliente podia resultar em boa féria?
Não dava para saber se todos os filmes da produtora estavam disponibilizados em vídeo... Mas é claro que o esforço de conseguir o que havia no mercado valeria a pena.
O rapaz deu a entender que se empenharia... Sugeriu que seria interessante entrar em contato com a produtora para conhecer uma lista dos filmes produzidos... Tertuliano esclareceu que aquilo não era necessário, talvez nem precisasse de todos os filmes lançados... Gostaria de conhecer os que a locadora disponibilizava.
As palavras do professor baixaram as expectativas do funcionário... Mas foi com disposição que ele se pôs a percorrer o acervo...
Tertuliano gritou-lhe que, para começar, bastavam cinco ou seis fitas.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – a aula após a desagradável conversa no corredor; reunião pedagógica após o almoço; as ideias do professor de História sobre as mudanças que deveriam ser feitas no ensino de sua disciplina; sobre “subgestos”

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Tertuliano chegou à sala de aulas... Seu estado carrancudo era visível. Um dos jovens comentou com o que estava mais próximo que o professor “vinha com a mosca”.
A realidade é que o pior já havia passado. Procedeu à chamada regulamentar com “voz firme e serena”... Na sequência anunciou que, embora a revisão dos últimos exercícios tivesse sido marcada para a próxima semana, resolvera adiantar o trabalho na última noite. Portanto as folhas de respostas estavam com os devidos registros... Em vez do simples arquivamento, os alunos poderiam manifestar as razões que os teriam levado ao erro... E acrescentou que, dependendo das justificativas, a nota também seria alterada para melhor.
Os rapazes não conseguiram disfarçar sua satisfação...
Estava claro que o mau humor do professor havia se dissipado.
(...)
Após o almoço aconteceu uma reunião do diretor com os seus professores. O assunto tinha como eixo a proposta de “atualização pedagógica”... De tempos em tempos as equipes educacionais das unidades escolares recebem documentos a respeito dos aproveitamentos e expectativas, são chamados ao debate quase sempre depois que tudo já foi definido pelos especialistas dos gabinetes...
Nos dizeres de Saramago, as ditas reuniões sobre as propostas de “atualização pedagógica fazem da vida dos infelizes docentes uma tormentosa viagem a Marte através de uma interminável chuva de ameaçadores asteroides que, com demasiada frequência, acertam em cheio no alvo”.
O diretor e os demais docentes conheciam as ideias de Tertuliano... Ele as repetia nas reuniões. Os colegas disfarçavam os risos sempre que isso acontecia. Dessa feita não foi diferente.
O professor de História insistia em sua tese sobre a eficácia do ensino de sua matéria... Em sua opinião, nenhuma “atualização pedagógica” resultaria em positiva se não se levasse em consideração que os conteúdos da área de conhecimento tinham de ser elencados “de diante para trás”... E não do modo tradicional, que inicia o programa a partir de temas referentes aos períodos antigos.
Como sempre, após essa repetitiva fala de Tertuliano, o diretor suspirou e os demais professores trocaram olhares e alguns poucos murmúrios... O colega de Matemática também sorriu diretamente para ele, mas este deu a entender que o entendia e que aquelas propostas todas não eram para serem levadas a sério.
O olhar e “subgestos” de Tertuliano pareciam agradecer a cumplicidade, mas também comunicavam que o episódio do corredor (antes de terem se dirigido às salas de aulas) não fora totalmente esquecido por ele.
(...)
Isso é divertido:
Saramago “desviou sua atenção” do professor (que tomou a palavra para defender seu ponto de vista solidificado em argumentos consistentes) para refletir sobre a questão dos “subgestos”...
Convencionalmente entende-se que os gestos das pessoas transmitem “dúvida, apoio, aviso de cautela”, e assim por diante.
Não se leva em consideração que talvez a dúvida não seja metódica, o apoio não seja incondicional, o aviso não seja desinteressado... Dessa forma, seria preciso atentar-se aos “subgestos” para conhecermos a “sinceridade” do que as pessoas transmitem nos diálogos que travam.
Os “subgestos” são como “as letrinhas pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão lá”. Complexos, mas muito importantes, poderiam ser estudados no futuro... Seriam classificados pela semiologia e, dessa forma, todos os que se interessam pelo “desvelamento total” dos discursos e posturas corporais fariam suas análises mais apuradas.
(...)
O professor que apresentava argumentos e defendia sua opinião a respeito da proposta de “atualização pedagógica” terminou sua fala.
O diretor ia prosseguir a rodada de intervenções quando Tertuliano pediu para falar. O chefe esclareceu que, se o que ele tinha a dizer se referia ao que o colega acabara de dizer, devia aguardar os demais pronunciamentos...
O professor de História esclareceu que conhecia as normas... Nada tinha a dizer a respeito das pertinentes palavras do professor que falara. Simplesmente pedia autorização para se retirar, pois tinha compromissos urgentes.
Saramago brinca mais uma vez ao dizer que dessa vez não se perceberia “subgestos” em Tertuliano, mas um “subtom” (isso demanda outros tantos divertidos esclarecimentos) que garantia aprovação ao solicitado.
O diretor consentiu que o professor de História se retirasse da reunião.
“Tertuliano Máximo Afonso despediu-se da assembleia com um aceno amplo de mão, um gesto para o geral, um ‘subgesto’ para o diretor, e saiu”.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – Tertuliano desequilibrou-se emocionalmente ao notar que o colega professor via muitas semelhanças entre ele e o ator de “Quem Porfia Mata Caça”; reação tensa à atitude paternalista; classificação dos humores à antiga e a perigosa “ira dos mansos”

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O colega de Matemática disparou que, em “Quem Porfia Mata Caça”, havia um ator de papel secundário que se parecia muito com Tertuliano... Este, que já se encaminhava à sala de aulas dando por satisfatório o diálogo de até então, ouviu as palavras do outro e sentiu-se fulminado.
Então era isso... O de Matemática sabia que o de História era impressionantemente semelhante a um tipo, e que isso podia ser conferido por qualquer pessoa que viesse a alugar uma simples fita. Ele disse que, se o colega passasse a usar bigode, um e outro seriam tão iguais como “duas gotas d’água”.
O coração de Tertuliano acelerou... Buscou forças para não aparentar intranquilidade e respondeu que reparou mesmo a “coincidência assombrosa”... Disfarçando um sorriso, emendou que só faltava ao desconhecido tornar-se professor de História.
O de Matemática disse que, “puxando pela memória”, podia lembrar que Tertuliano também usou bigode por um tempo... Angustiado, respondeu que podia ser que o professor de História da época fosse o outro...
A resposta foi no mínimo arriscada, pois evidentemente não colocava ponto final ao assunto. Todavia o professor de Matemática quis consolá-lo ao dizer que reconhecia que o colega estava mesmo muito deprimido e que não devia se sentir tão afetado por uma “coincidência sem importância” como aquela...
Disse essas palavras colocando a mão no ombro de Tertuliano... Uma atitude paternalista que só fez aumentar ainda mais a insegurança do pobre rapaz, que tentou se esquivar afirmando que não estava afetado... Procurou justificar que sua indisposição devia-se ao fato de não ter passado bem à noite e por não dormir o suficiente.
O professor de Matemática arrematou que a noite mal dormida só podia ser resultado de sua angústia, e que o que o angustiava era o “sentir-se afetado”. No mesmo instante, ainda com a mão sobre o ombro de Tertuliano, percebeu que este se tornou tenso dos pés à cabeça... Notou que seu olhar tornou-se duro, então, com todo o cuidado, afastou o braço e se despediu dizendo que não almoçaria na escola.
Tertuliano nada disse... Baixou a cabeça e seguiu para a sala de aulas onde os alunos o aguardavam.
(...)
É Saramago quem diz que a reação de Tertuliano junto ao colega de Matemática havia sido “uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente conhecida como ira dos mansos”.
Na sequência, o autor trata dos temperamentos humanos tais como eram classicamente divididos (melancólico, fleumático, sanguíneo, colérico)... Cada um deles reconhecido a partir do tipo específico de reação dos organismos (cor da bílis, o humor da fleuma, do sangue...). Pelo visto, a lágrima não mereceu consideração dos entendidos em “posturas psíquicas” no passado... Talvez por isso, “mansos” não ficaram sem lugar nas categorias estabelecidas.
Entretanto, tipos como Tertuliano sempre existiram e cada vez mais são vistos em maior quantidade espelhados pelas cidades...
O fato de o professor de História não ter derramado lágrimas após as breves palavras trocadas com o colega de Matemática não significa que, em seu interior, não estivesse a se despedaçar. De fato, não raro, os mansos trazem consigo o lenço sempre necessário ao socorro dos olhos lacrimejantes.
Atitudes em demasiado protetoras, como pareceu ser a do colega de Matemática, podem provocar a reação conhecida como “ira dos mansos”... O professor notou a mudança em Tertuliano... De submisso passou a hostil... Talvez tenha se afastado dizendo que só se encontrariam novamente mais tarde para não aumentar ainda mais o desconforto do outro.
Saramago brinca ao registrar que antes de dormir muitos oram a Deus para que sejam livrados “de todo mal, e em particular da ira dos mansos”.
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Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 21 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – para o de Matemática, os problemas do mundo são os problemas que as pessoas têm; breve troca de ideias sobre a fita sugerida pouco antes do início das aulas; Tertuliano soube que o colega também havia notado a semelhança entre ele e o ator da comédia

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A conversa na sala dos professores prosseguiu sem que se vislumbrasse consenso ou um ponto final...
Tertuliano pretendia conversar sobre outro tema, mas para não perder o outro de vista disse que não entendia por que pessoas como eles podiam ser considerados culpados pelas crises mundiais... Será que não seria razoável levar em conta as sociedades? O professor que se dedicava aos cálculos numéricos redarguiu que “sociedade” ou “humanidade” são meras abstrações... Para ele, até mesmo a Matemática seria mais concreta do que aquilo que esses conceitos pretendem significar.
O professor de História ainda quis saber o que o colega pensava sobre os estudos da Sociologia... Como resposta ouviu que os chamados estudos sociais são tudo, “menos estudos sobre as pessoas”.
Só lamentações... Tertuliano argumentou que os da Sociologia certamente não aceitariam aquela opinião... O de Matemática admitiu a razão do colega, porém, em sua opinião, ninguém deveria se limitar aos conceitos corporativistas, daqueles que só levam em consideração a defesa do núcleo do qual participam.
Aquela temática tinha de terminar... Tertuliano desejava isso. Então disse que em todo grupo há aqueles que procuram proceder criticamente e com responsabilidade... Mais uma vez o professor de Matemática manifestou coerência de raciocínio e disse que, de certa forma, na tentativa de se buscar uma “desculpabilização universal”, costuma-se chegar à conclusão de que “ninguém é culpado” exatamente porque a culpa está em toda gente.
Haveria algo a se fazer? O próprio Tertuliano arrematou que não, pois os problemas (que chamaram a atenção do colega ao ler o jornal, e que deram início ao diálogo) são de ordem mundial.
O professor de Matemática voltou sua atenção ao jornal ao mesmo tempo em que respondeu que “o mundo não tem mais problemas que os problemas das pessoas”.
(...)
O relógio apontava que o início das aulas estava próximo... Tertuliano não conseguia trazer à tona o assunto de seu interesse... Simplesmente não via sentido em olhar diretamente nos olhos do outro e falar a respeito do filme que ele havia lhe sugerido... E que encontrara no empregado da recepção o seu “retrato vivo”... Evidentemente isso equivaleria a escancarar ao outro o motivo de sua secreta inquietação.
De repente, o professor de Matemática perguntou se havia alugado o filme...
Tertuliano quase não conseguiu esconder sua agitação... Respondeu afirmativamente e emendou que a comédia era divertida... O de Matemática quis saber se depois de assistir à fita se sentira melhor da depressão... No mesmo instante corrigiu-se e disse “marasmo”.
O professor de História disse que o nome do distúrbio que o atormentava não importava... Não é no nome que reside o mal que o aflige... Tanto faz dizer “depressão” ou “marasmo”.
O de Matemática ajeitou seu material porque também tinha alunos a aguardá-lo... Disse que o que importava era o fato de o filme ter feito algum bem para o colega. Para Tertuliano, essa ocasião pareceu ideal para perguntar sobre qual teria sido a última vez que o colega assistira ao filme. Acrescentou que era “apenas uma curiosidade”...
O tipo respondeu que vira o “Quem Porfia Mata Caça” uma única vez, há cerca de um mês, quando certo amigo emprestara-lhe a fita. Tertuliano disse que achava que o colega tivesse a fita em sua coleção... Mas é claro que não! Se assim fosse, o de Matemática a emprestaria, evitando o gasto do de História com a locação.
(...)
Encaminharam-se para os corredores que davam para as salas de aulas... Tertuliano sentia-se aliviado... Talvez porque sentisse que o segredo da duplicação permanecesse unicamente com ele.
Despediram-se...
Depois de quatro passos em direções opostas, o professor de Matemática lembrou-se de perguntar se o colega havia notado que há um ator de papel secundário em “Quem Porfia Mata Caça” parecidíssimo com ele.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – Tertuliano antecipa a saída para o trabalho, assim refletirá sobre a duplicidade com o ator de “Quem Porfia Mata Caça”; optou por não entregar a fita conforme a orientação do seu Senso Comum; uma conversa com o colega de Matemática sobre os problemas do mundo

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Tertuliano banhou-se... Evitou o espelho no momento de se pentear.
Fez a primeira refeição do dia na cozinha... Torradas, suco de laranja, café com leite e iogurte. Saramago tece comentário sobre a necessidade de o professor não descuidar da alimentação, ainda que não vislumbre resultados positivos da parte de seus alunos.
O expediente não começava antes das onze horas... Mas Tertuliano não estava disposto a permanecer por mais tempo em casa. Enquanto escovava os dentes, notou a espuma que secava aos poucos e escondia o reflexo do espelho...
Lembrou-se que não era dia de faxina na casa...
Há seis anos a limpeza do apartamento era feita pela vizinha do andar de cima. A mulher era viúva, já tinha certa idade e também vivia só. Estava habituada à organização do professor, então certamente estranharia a falta de cuidado com o espelho.
(...)
Pronto para sair, Tertuliano decidiu que o trajeto até a escola seria de reflexões sobre as revelações da última noite... Não utilizaria o transporte público, como fazia normalmente, e sim o castigado automóvel...
Estava bem adiantado... Mas resolveu que faria o percurso de carro para ter um pouco de sossego. Depois de acomodar os exercícios na pasta, parou por um instante diante do aparelho de vídeo... Se fosse para seguir os conselhos do Senso Comum, retiraria a fita para entregá-la à locadora, onde inventaria uma desculpa qualquer para a devolução antecipada.
Todavia o professor passou adiante.
Imprimiu uma condução lenta ao veículo como se estivesse a passear pela cidade... Não tinha pressa... Não protestou contra os sinais vermelhos... Não tinha motivo para isso...
Enquanto dirigiu não conseguiu encontrar explicações para o caso da duplicação... Tinha certeza apenas de que era senhor do caso e em suas mãos estava o poder de decidir o que fazer... Já divisava o prédio escolar quando sentenciou para si mesmo que não podia se livrar daquela loucura, sepultá-la e esquecê-la... Concluiu que não era capaz disso e, ao mesmo tempo, via-se obcecado por respostas para a aberração.
(...)
Acomodou-se na sala dos professores.
Faltava muito tempo para as aulas começarem. Então colocou os exercícios dos alunos sobre a mesa e disfarçou uma “revisão da correção” para dar ares de normalidade à sua chegada antecipada. Porém nem ele mesmo acreditava que levassem a atividade a sério...
Depois de algum tempo, o professor de Matemática chegou à sala. No mesmo instante dirigiu-se para perto de Tertuliano... Cumprimentou-o e perguntou se o atrapalhava. O da cadeira de História improvisou que estava apenas a “passar uma segunda vista de olhos” nas atividades dos alunos...
Falaram brevemente sobre o aproveitamento dos estudantes... O de Matemática concordou que a rapaziada não se diferenciava em muito do que eles mesmos haviam sido em seu tempo de secundaristas.
Tertuliano esperava que o outro entrasse no assunto do filme... Mas o de Matemática levantou-se para servir-se de café animado pela conversa sobre o desempenho da estudantada. Depois pegou o jornal e pôs-se a folheá-lo... Deteve-se um pouco mais diante de alguns títulos, franziu o nariz e lamentou a situação geral do mundo.
Na sequência, levantou a questão sobre a origem das catástrofes de nosso tempo e quis saber a opinião de Tertuliano. De acordo com o entendimento do matemático, as gerações mais antigas tinham parcelas de culpa... Sentenciou que também eles deviam se sentir culpados.
Em seu íntimo, Tertuliano esperava que, de alguma maneira, aquele assunto fluísse para “Quem Porfia Mata Caça”... Pediu para o colega se explicar melhor. Então o de Matemática começou uma analogia sobre um cesto com laranjas que vão apodrecendo aos poucos sem que ninguém consiga definir o princípio de toda podridão...
Tertuliano perguntou se as laranjas eram os países ou as pessoas... O outro explicou que a situação variava de acordo com a tese que se quisesse formular... Os países são constituídos por seus habitantes; no mundo há os países... E “como não há países sem pessoas, é por elas que o apodrecimento se principia”...
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 20 de agosto de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – da confusão de admitir que o ator lhe fosse totalmente estranho; optar pela razão e colocar fim à situação ou seguir a intuição; o Senso Comum dispõe-se a um reencontro; novo devaneio no começo do dia

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/08/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-no.html antes de ler esta postagem:

Tertuliano tinha de ouvir aquelas palavras...
Como não podia deixar de ser, Senso Comum prima pela simplicidade de raciocínio... Era evidente que, após troca de ideias num hipotético encontro entre os “dois idênticos”, encontros seriam marcados e muitas questões pessoais mantidas em segredo seriam reveladas... Tertuliano sabia bem que com um estranho devemos tomar todo cuidado para não nos abrirmos demais, mas ele parecia não crer que qualquer aproximação com o tipo pudesse resultar em grande confusão.
Ele mesmo disse que era difícil considerar estranho alguém que era o seu “retrato vivo”. Para o Senso Comum não havia necessidade de perder tempo com esse tipo de consideração... O rapaz devia tocar a vida de sempre sem querer mudar o fato de o outro ser um desconhecido... É dessa forma que devia permanecer.
Tertuliano teimou... Concordou que o outro era desconhecido, mas não o via como um estranho.
(...)
O Senso Comum garantiu que todos nós somos estranhos... Eles mesmos (Tertuliano e o próprio Senso Comum) eram estranhos um para o outro... Pouquíssimas vezes haviam se falado e ainda mais raras foram as ocasiões em que tiraram algum proveito.
Tertuliano admitiu que aquilo fosse verdade... Ele próprio se sentia culpado por não se falarem mais vezes. O Senso Comum quis tranquilizá-lo e expressou que a natureza de ambos os colocava em caminhos paralelos, e que a distância que os separava era muito grande... O fato de se falarem naquele momento devia-se à “emergência da situação”.
O rapaz entendeu o tom de seriedade dado pelo seu Senso Comum. Deu a entender que admitia as consequências e que “o que tiver de ser, será”... O Senso Comum explicou que a ideia da predestinação podia, muitas vezes, justificar o comodismo... Advertiu que no final das contas o que quer que ocorresse seria resultado das opções do próprio Tertuliano.
O moço respondeu que faria exatamente o que tinha de se fazer. Então o Senso Comum lembrou que há pessoas que se decidem por opções que levam em conta apenas a própria vontade, e depois saem a dizer que as decisões tomadas se baseavam “no que devia ser feito”.
Tertuliano apresentou argumentos que contestavam a ideia de que “as decisões baseadas na vontade são as mais simples”... Para ele, a “indecisão, a incerteza e a irresolução” eram simples... Garantiu que a experiência o levara a pensar dessa forma.
O Senso Comum admitiu que, pelo menos por enquanto, sua missão estava encerrada, pois estava certo que o professor faria o que bem entendesse. Despediu-se desejando que tudo ocorresse da melhor forma... Tertuliano mesmo disse que era provável que se reencontrariam noutra “situação de emergência”. A entidade foi se afastando e dizendo que esperava alcançá-lo a tempo.
(...)
Definitivamente o dia havia se iniciado...
Nenhuma luz artificial nas ruas... O trânsito já era dos intensos...
Para alguns, aquele era o primeiro dia de suas vidas... Para outros, era o último... Para a maioria, era apenas “mais um dia”.
Como seria esse novo dia na vida de Tertuliano Máximo Afonso?
Bem poderia ser “outro primeiro dia, um outro começo”.
(...)
Contemplou no espelho o próprio rosto cansado.
Tinha dormido bem pouco... E tudo porque não encontrara explicação para a medonha descoberta. Jamais na História da Humanidade “aconteceu existirem duas pessoas iguais no mesmo lugar e no mesmo tempo”!
Tertuliano barbeou-se e concluiu que seu aspecto era aceitável... Considerou mesmo que as pessoas de seu convívio não tinham motivos para censurar-lhe a aparência... Quem sabe não faria sucesso interpretando papel de galã num seriado da televisão?
O questionamento que Saramago colocou nos pensamentos de seu personagem levou-o (o autor brinca com essa ideia) à mesa de trabalho, onde pegou um “marcador preto” para, diante do espelho, imprimir acima de seu lábio superior um bigode que lhe permitisse fazer a vez do ator quando interpretou o empregado de recepção de hotel...
Espantou-se mais uma vez... No espelho viu refletida a imagem do outro. Quem era aquele desconhecido, “seu igual”, de quem sequer sabia o nome?
Por um tempo isso o levou a um estado de confusão.
Só depois de fechar os olhos e de lançar água ensaboada contra o espelho voltou a si... Reassumiu sua condição de professor de História do Ensino Secundário e de modesto proprietário daquele apartamento.
Para refazer-se de mais esse devaneio resolveu submeter-se à ducha fria.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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