Antes de colocar “O Código Maldito” no aparelho de vídeo, Tertuliano repassou o final de “Quem Porfia Mata Caça” para copiar os nomes registrados nos créditos... Entre eles estava o do artista secundário cuja aparição estava transtornando sua existência. Se ao lado de cada nome masculino constasse também o papel de cada um no filme o trabalho do professor seria facilitado. Mas infelizmente não era assim.
A cada filme assistido, a intenção era a de fazer as anotações tendo o ator aparecido em alguma cena ou não... É claro que, relacionando todos os nomes, poderia comparar com a lista de “Quem Porfia Mata Caça”. Naturalmente nomes dos que atuaram em filmes onde o seu “retrato vivo” não tinha participação seriam eliminados até que restasse apenas o do próprio.
Neste ponto da escrita, Saramago faz um registro sobre o método e a organização de Tertuliano, algo que conservava “de família” e que mantinha o caos afastado.
(...)
E não é que o “retrato vivo” apareceu em “O Código
Maldito”?
O tipo fazia o papel de um caixa de banco... Num trecho específico do
filme ele sofria a ameaça de um assaltante armado... Provavelmente preocupado
em fazer com que notassem seu talento, exagerou na reação de pânico... Na
sequência, sob a feroz ameaça, abriu o cofre, retirou valores que colocou na
bolsa do bandido.
Ele apareceu mais duas outras vezes... Primeiro
respondendo perguntas feitas pela polícia... Depois quando o gerente o retirou
da função devido ao trauma de enxergar potenciais assaltantes em todos os
clientes.
Diferentemente da ocasião em que se chocou ao assistir ao “homem
idêntico” em “Quem Porfia Mata Caça”, dessa vez Tertuliano estava calmo e mentalmente
ocupado com sua metódica caçada ao nome... Fez os registros e constatou que
podia eliminar apenas dois.
(...)
Ainda tinha tempo para dedicar ao próximo filme, o “Passageiro Sem
Bilhete”. Não eram horas de jantar e, além disso, sequer sentia fome.
O “Passageiro Sem Bilhete” rodou até o final sem que se notasse
participação do figurante... Não se pode dizer que Tertuliano perdeu tempo com
este filme porque graças a ele alguns nomes das duas primeiras listas foram
riscados.
E era assim mesmo, por exclusão, que chegaria ao nome do ator.
Afinal, o que pretendia com
todo esse trabalho? Até este ponto não se tem ideia da intenção última do
professor de História... Mas o seu primeiro objetivo estava tão longe de ser
alcançado que o “segundo passo” podia ser pensado posteriormente.
(...)
O telefone tocou.
Tertuliano descartou a
possibilidade de ser o colega de Matemática... Provavelmente fosse a insistente
namorada... Também podia ser uma chamada da mãe que, vivendo no interior,
procurava manter os laços com o filho professor na cidade grande.
O aparelho parou de
tocar e o mecanismo da secretária eletrônica foi acionado automaticamente... Ele
não esboçou nenhuma curiosidade. Em vez de ouvir a gravação, seguiu para a
cozinha, preparou um lanche e serviu-se de mais uma cerveja.
(...)
Enquanto se alimentava, Tertuliano tentava pensar sobre os últimos
acontecimentos... Era certo que seu cansaço mental impossibilitava o pleno
exercício da consciência.
Não demorou e o Senso Comum
reapareceu perguntando-lhe se estava feliz com a decisão que havia tomado...
O rapaz respondeu que o procedimento que adotara não
tinha relação com busca da felicidade ou qualquer outro tipo de satisfação...
Acrescentou que até onde sabia a felicidade não era criação do Senso Comum.
O Senso Comum explicou que a maioria das situações em que nos metemos só
avança para circunstâncias complicadas quando nós mesmos as impulsionamos... O
professor quis argumentar que a curiosidade levou-o a buscar outros filmes da
produtora e a fazer a investigação.
A curiosidade não é condenável... O Senso Comum
destacou que as atitudes curiosas tinham sua origem no próprio Senso Comum...
Então se iniciou uma discussão, já que para Tertuliano aquilo era incompatível.
O Senso Comum deu como exemplo a invenção da roda... Apenas “uma enorme quantidade
de senso comum é que teria sido capaz de a inventar”... Tertuliano quis saber,
então a respeito da invenção da bomba atômica...
Sem dúvida grande quantidade se senso foi
necessária para a construção do artefato bélico... Mas, de acordo com o Senso
Comum, nesse caso da concepção de algo com tamanho poder de destruição, “não
havia nada de comum no senso” utilizado por seus executores.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-o.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto