terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – sobre o registro de 4 de maio de 1893; das condições físicas de dona Teodora; os arranjos para a “Festa de Santa Cruz”; reunião na chácara e a ceia conhecida como “judeu”; o negro Tomé e seus feitiços; quitutes que rendiam alguns cobres às negras da chácara; Helena adora a diversão enquanto dona Carolina entende que “a vida é de sofrimentos”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_48.html antes de ler esta postagem:

Helena não perdia as ocasiões de festas religiosas. Ela participava ativamente, divertia-se e ajudava na organização.
As que aconteciam na igreja de Nossa Senhora do Rosário eram as que ela mais aproveitava, pois era próxima à chácara de dona Teodora.
Como sabemos, a avó era perseverante em relação aos ensinamentos da religião e, sempre fiel à igreja, fazia questão de contribuir nas ocasiões festivas. Por se tratar de uma senhora obesa e pesada, o bispo havia lhe dado “licença de ouvir a missa da janela do quarto”... O padre levava-lhe a comunhão.
(...)
Em seu registro de 4 de maio de 1893, a garota destacou o quanto achava bom que a igreja do Rosário fosse tão perto. O dia anterior havia sido de “Festa da Santa Cruz” e Helena se envolvera nos arranjos de decoração desde a manhã. Suas primas não eram como ela, pois só chegavam para o evento na parte da tarde.
Bambus e mastros tinham de ser fincados no solo... Seus irmãos, Renato e Nhonhô, ajudavam a cortar os bambus...
Bandeiras tinham de ser penduradas, prateleiras deviam ser instaladas... Helena se orgulhava de encarregar-se das várias tarefas... Não faltava o que fazer! No ano anterior teve de preparar lamparinas de laranja-da-terra porque faltaram as de barro.
Desta feita as filhas de certo Seu Cláudio arrecadaram donativos e compraram várias lamparinas de barro. Elas eram colocadas nas prateleiras e abastecidas com azeite. Depois de acesas, a praça ficava iluminada.
Donana, esposa do doutor Teles, ajudou as filhas do Seu Cláudio. O ambiente ficou muito alegre. Dona Teodora mandou buscarem boa quantidade de areia para que Helena e sua irmã mais nova, Luisinha, espalhassem pelo chão... Por cima da areia colocaram folhas de café.
(...)
Helena tinha muitos motivos para festejar, pois a chácara da avó ficava repleta de tios e primos...
As negras caprichavam na cozinha e serviam uma excelente refeição (“frangos de molho pardo, lombo de porco, arroz e angu”)... Ceias como essa, de farta comida, eram popularmente (e talvez ironicamente) chamadas de “judeu”.
(...)
Em seus registros, a garota esclarece que muitos negros do tempo da escravidão ainda viviam na chácara... Eles não quiseram sair após a Lei de 13 de Maio e, de acordo com os apontamentos do diário, dona Teodora não se importava de sustentá-los.
É verdade que um deles, chamado Tomé, foi expulso por ela. Dizia-se que este tipo era feiticeiro e pretendia atrair certa Andresa para casamento... Dizia-se que ele estava “aprontando” (de acordo com a nota, “aprontar” era “dar chás de raízes para conseguir a benquerença de uma pessoa).
Helena admirava as negras que não se embriagavam... Eram boas pessoas e se esforçavam para juntar algum dinheiro. Faziam “pastéis de angu, sonhos e carajés” que vendiam nas festas e também nas portas de teatros.
Dona Teodora comprava das guloseimas feitas por elas e distribuía entre os netos, que passavam a noite na comilança.
(...)
Os dias seguintes às festas eram de tristeza para Helena.
Ela comenta que dona Carolina a repreendia dizendo que não era certo ter o gênio de quem “quer aproveitar tudo”...
Para a sua mãe, “a vida é de sofrimentos”.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – ainda o registro de 10 de maio de 1894; bullying na escola da Mestra Joaquina; a incrível história de Maria da Conceição

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Helena interrompeu sua tarefa doméstica para prestar atenção à conversa de seu pai com o seu Juca Parrudo.
É bom que se saiba que ela era daquelas que não se importavam em ajudar à mãe nos serviços de casa. Não seria exagero dizer que ela preferia os afazeres domésticos às aulas.
Outra coisa de que ela gostava era de ouvir as conversas dos adultos... Formava uma opinião e às vezes se intrometia a dar palpites.
(...)
Naquela manhã de 10 de maio de 1894, interessava-lhe ouvir o homem falar a respeito de sua filha de criação, Maria da Conceição.
Acontece que Helena conhecera a Maria da Conceição na época em que frequentara a escola de Mestra Joaquina. Ela conta que certa vez outra menina do grupo de alunas brigou com a Conceição e a chamou de “Maria do Esgoto”.
A agressão verbal foi punida com um castigo imposto pela professora. Talvez para justificar sua decisão às demais alunas, ela perguntou que culpa Maria tinha de “a terem jogado no esgoto”.
Helena estranhou a intervenção de Mestra Joaquina... Então as colegas lhe contaram como foi que a garota havia sido encontrada pelos pais de criação. Mas ela não deu muito crédito ao que lhe fora dito...
O tempo passou (mais ou menos quatro anos) e sua curiosidade a respeito de como Maria da Conceição se tornara adotiva não diminuiu. Mas pelo visto não acreditava que um dia conheceria a verdade dos fatos.
(...)
Seu Juca agradeceu as salsas que recebeu do pai de Helena...
Dona Carolina apareceu e o cumprimentou. Ela quis saber como estava a menina Maria da Conceição. Ele respondeu conforme o costume e na sequência emendou a história que Helena queria ouvir.
Ela surpreendeu-se... Mas a verdade é que o seu Juca não se importava de falar a respeito de como ele e a esposa encontraram a pequena Maria.
Ele disse que o casal vivia triste... José, o único filho que tiveram, estava crescido e emancipado. Seu Juca e a esposa desejavam ter mais um filho ou filha...
Para ele, Deus havia lhes enviado a menina. De fato, o caso era espantoso... De acordo com suas próprias palavras, o modo como Maria chegou a eles havia sido “esquisito”.
(...)
Certa noite, depois que fecharam a casa e estavam prontos para dormir, sua esposa disse que ouviu um choro de criança que saía debaixo do assoalho. Seu Juca não acreditou e respondeu que ela estava cismada.
A mulher insistiu e pediu que ele mesmo encostasse o ouvido no assoalho. Ele fez isso e conferiu que, de fato, uma criança estava gritando abaixo do piso.
Imediatamente ele se dirigiu à cozinha para pegar um machado... Com essa ferramenta arrancou algumas tábuas. Depois com o auxílio de uma enxada cavou até chegar ao encanamento que passava por ali.
Foi então que descobriu a criancinha que vinha rolando desde a Rua do Carmo até onde estavam, na Rua do Bonfim.
A menina estava bem machucada, cortada por cacos de vidro e lambuzada por todo tipo de imundície. A esposa do seu Juca lavou-a com “um banho de água com sal e arnica”...
O casal cuidou da Conceição como se fosse sua filha legítima. Para seu Juca, ela só não morreu porque era “um presente do céu, que Deus lhe mandou”.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – uma introdução para o registro de 10 de maio de 1894; visita de seu Juca Parrudo à horta de seu Alexandre; salsas para o “trato das urinas”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_25.html antes de ler esta postagem:

Segue uma introdução para mais esta postagem sobre o diário de Helena Morley:

No primeiro mês deste ano passei por maus momentos devido a umas dores renais... Os médicos diagnosticaram cálculos (bem pequenos, mas doloridos demais).
Tive de tomar remédios que provocaram efeitos colaterais, pois tive desconfortos estomacais e intestinais... Recebi muitas informações sobre os perigos do mal funcionamento dos rins e a respeito da urgência dos tratamentos. Algumas mensagens que enviaram eram bem catastróficas e assustam a qualquer um.
Também mandaram propostas alternativas de tratamento e prevenção... Uma delas sobre a “milenar medicina chinesa” que sugere a ingestão de “chás de salsinha”, muito bons para a limpeza do aparelho renal.


(...)

Como se pode observar, os registros de Morley em seu diário de menina nos possibilitam esboçar um panorama do cotidiano provinciano na região de Diamantina de fim de século XIX...
Quem lê o texto completo acaba se identificando mais com certos relatos do que com outros e elege alguns deles como imperdíveis...
Até o momento destacamos recortes sobre as origens da família de Helena, um pouco sobre os avós católicos, um pouco sobre o avô inglês... Também há a postagem (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_24.html) sobre as festividades religiosas daqueles tempos e a mobilização dos negros durante a “Festa do Rosário”.
Prosseguiremos com outros recortes sem a intenção de tratar da totalidade do livro... Já deu para perceber que a seleção que organizei não leva em consideração a ordem cronológica... Alguns temas não podem “passar em branco”: as superstições; as passagens da escravidão para a “vida livre”; a “educação formal” das normalistas e o cotidiano nas escolas; as discussões sobre política; o comércio e hábitos alimentares; trabalho e lazer de jovens e adultos... E muito mais.
Vamos ver até onde iremos com as narrativas...
(...)
Para esta postagem reservei informações do registro feito a 10 de maio de 1894.
Na manhã daquela quinta-feira, Helena estava passando roupas a ferro quando bateram à porta de sua casa. Certo Juca Parrudo pretendia falar com seu Alexandre.
Helena levou-o à horta, onde o pai organizava os canteiros. Assim que os dois iniciaram a conversa, a garota abandonou sua tarefa doméstica... Ela mesma afirma que não perdia “conversa de gente grande”. Ela tinha uma curiosidade a respeito da filha de criação de seu Juca, Maria da Conceição, e não podia perder a oportunidade de ouvir o que tinham a dizer.
(...)
O homem ficou contente por encontrar seu Alexandre e foi dizendo que gostaria que este lhe “arranjasse umas salsas”... E por quê? Porque lhe ensinaram que elas eram muito “boas para as urinas”.
Seu Juca explicou que um conhecido, Sebastião Coruja, dissera que só mesmo com o seu Alexandre é que ele poderia conseguir as salsas e que se não encontrasse “na horta do Alexandre, não encontraria mais em parte nenhuma”, pois “só lá é que ele não passa sem essas coisas”.
Seu Juca comentou que, de fato, Sebastião Coruja tinha razão porque a horta estava muito bonita... Acrescentou que aquilo só podia ser porque seu Alexandre era “de outra raça”... Haveria outra explicação? Todos na Diamantina possuíam hortas, mas ninguém as tratava como ele. E emendou que ainda seguiria o exemplo.

(...)

Achei interessantíssimo...
Enviaram-me mensagens quando estive mal dos rins... Citaram a “milenar medicina chinesa” no tratamento e limpeza dos órgãos.
O fragmento escolhido nos dá conta de que, também no Brasil, há muito tempo já se conhecia os benefícios da salsa “para as urinas”.
Evidentemente não foi este o conteúdo da conversa que interessou à menina Helena. O que ela esperava ouvir de seu Juca dizia respeito à sua filha de criação.
Mas isso fica para a próxima postagem.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_48.html
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

domingo, 26 de fevereiro de 2017

“A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, de Júlio Verne – da “Coleção eu Leio” – Passepartout faz compras em Bombaim; diversidade cultural e “desfile parsi”; confusão no pagode de Malebar-Hill; trem para Calcutá; Fix altera seus planos de perseguição

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/a-volta-ao-mundo-em-oitenta-dias-de_12.html antes de ler esta postagem:

Passepartout também começava a perceber que o patrão não pretendia ficar por muito tempo em Bombaim... As compras que tinha de fazer e a ordem de chegar à estação antes das 20:00 eram indícios de que a aposta de volta ao mundo em oitenta dias parecia ser séria... Não podia sustentar que retornariam para Londres depois de chegarem a Calcutá. Pelo visto, ele que pretendia se estabelecer num emprego estável, teria de prosseguir na aventura.
(...)
Suas andanças por Bombaim depois de ter adquirido camisas e outras peças indispensáveis o colocou diante de uma variedade tremenda de transeuntes... Armênios, parses...
Sobre esses últimos, o texto destaca que estavam em dias de festividades religiosas... Eram “descendentes diretos dos seguidores de Zoroastro” e se destacavam por sua iniciativa em relação aos negócios. Ainda de acordo com o texto, os parses deviam ser entendidos como os mais rigorosos e inteligentes hindus. Por isso estavam entre os mais ricos de Bombaim.
Em relação às festividades, pode-se dizer que a comunidade celebrava “uma espécie de carnaval religioso”... Havia diversão em meio às pessoas... Bailarinas ricamente adornadas acompanhavam uma procissão pelas ruas... O som dos instrumentos era maravilhoso e as moças evoluíam uma linda coreografia. Não foi por acaso que os olhos e ouvidos de Passepartout tornaram-se mais atentos.
A curiosidade levou-o a acompanhar mais de perto o desfile. É claro que o rapaz se esqueceu do tempo enquanto esteve entretido com o visual e os sons festivos.
(...)
No caminho para a estação, o francês admirou-se com o pagode (templo) de Malebar-Hill e decidiu que precisava conferir o seu interior.
Ele não tinha ideia de que nem todos os acessos religiosos hindus eram permitidos aos ocidentais... Além disso, a entrada nesses espaços sempre foram marcadas pelo mais profundo respeito... O ingressante tem o dever de descalçar-se tão logo chegue à porta. Mas Passepartout não tinha conhecimento da cultura religiosa local.
O texto salienta que o governo inglês não pretendia alimentar desentendimentos com os locais por motivos religiosos... Costumes perfeitamente toleráveis não deviam gerar desconfortos que atrapalhassem os investimentos colonialistas, o que de fato interessava.
É por isso que o governo punia exemplarmente os que desrespeitassem as práticas religiosas em terras indianas.
(...)
Aconteceu que o criado de Phileas Fogg foi entrando no templo como qualquer turista acessa
museus e ricas exposições exóticas... De fato, as paredes possuíam decorações deslumbrantes, muitas delas em ouro. O francês não escondia sua admiração.
Passepartout não entendeu quando chegaram por trás e o derrubaram... Do chão, enquanto levava nervosos pontapés, observou três sacerdotes brâmanes. Eles estavam furiosos, gritavam e batiam nele enquanto arrancavam-lhe os sapatos e meias.
Passepartout levantou-se como pôde... Defendeu-se desferindo socos contra dois dos homens que também se atrapalhavam devido às longas túnicas que vestiam... Na sequência correu em direção à saída, sendo acompanhado a certa distância pelo terceiro religioso.
Alcançou o lado externo e correu o mais que pôde. Assim conseguiu livrar-se de seu perseguidor e de outros hindus que atendiam ao seu apelo para capturar o fugitivo.
(...)
Pouco antes do horário da partida do trem, Passepartout chegou à estação... Estava sem chapéu e sapatos, além disso perdera o pacote com as compras.
Ao se aproximar do patrão, contou-lhe sobre os episódios no pagode de Malebar-Hill... A certa distância estava o inspetor Fix que a tudo ouviu com atenção.
(...)
Em relação a Fix, é bom que se saiba que ele passara o tempo a perseguir o senhor Fogg... Percebeu que ele prosseguiria de trem até Calcutá, então decidiu fazer o mesmo... Iria até onde fosse necessário para prendê-lo.
(...)
Phileas Fogg chamou a atenção de seu empregado. Manifestou que esperava que o rapaz não se metesse novamente em encrencas como aquela.
Passepartout, que não tinha argumentos para se defender, abaixou a cabeça e seguiu o patrão.
Fix começou a subir no vagão onde estava reservado o seu lugar... Todavia, no último instante, decidiu ficar em Bombaim porque mudou os planos... Concluiu que tinha condições de prender o seu suspeito se trabalhasse com a tese de “delito cometido em território hindu” (a confusão que o francês arrumou no templo brâmane).
O trem deixou a estação e partiu no rumo da escuridão.
Leia: A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – Coleção “Eu Leio”. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto

sábado, 25 de fevereiro de 2017

“Minha Vida de Menina”, de Helena Morley – baderneiros de Diamantina de fins do século XIX ; o infortúnio da negra Júlia em seu dia de reinado na festa do Rosário; sobre o registro de 9 de novembro de 1893; a menina problematiza conceitos religiosos; o “Doutor Inglês” e o “céu dos ingleses”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/02/minha-vida-de-menina-de-helena-morley_24.html antes de ler esta postagem:

Estávamos neste ponto em que Helena comentava a respeito de alguns rapazes de famílias importantes que se divertiam praticando maldades.
Em seus registros de 30 de maio de 1893, ela conta que os tipos também aprontaram na chácara de dona Teodora... Pularam o muro durante a noite e apanharam “todas as frutas maduras”. As que não estavam no tempo de serem recolhidas foram maldosamente cortadas pela metade... Puxaram as verduras... Bonitos repolhos foram atirados pelos canteiros. Danificaram abóboras, que foram despedaçadas... Uma delas era bem grande e vinha sendo preservada na esperança de que crescesse ainda mais.
Helena mostra toda sua indignação... Gostaria mesmo de vingar a agressão, porém isso estava longe de suas possibilidades... Ela mesma afirma que só se fosse homem para agir contra os ladrões.
Apesar de não entender bem, acabava reconhecendo o modo como a avó reagia aos infortúnios... Inicialmente dona Teodora dava a entender que se sentia chocada, depois sentenciava que “poderia ser pior”.
(...)
O jantar que Júlia havia preparado com tanto esmero foi estragado pelo bando.
Eles roubaram o leitão!
Pelo visto os arruaceiros planejaram muito bem a traquinagem... Pelo visto conseguiram convencer um menino pequeno a passar pela janela da sala. Este deve ter passado a noite escondido até que chegasse o momento de agir com os demais.
Helena descreve o prato, que “estava uma beleza”... “Cheio de farofa, com palitos enfeitados de papel de seda repenicado, prendendo rodelas de limão e azeitonas, e na boca uma rosa”.
Não há registros sobre o que ocorreu na sequência, o desfecho da festa ou o infortúnio de Júlia.

(...)

Helena Morley fez um interessante registro a 9 de novembro de 1893 em seu diário.
Mencionamos em postagem anterior que seus avós paternos eram ingleses... Certamente a menina não demorou a notar as diferenças entre os dois ramos familiares. Como não podia deixar de ser, divergiam religiosamente. A família de dona Teodora era católica e cumpria fielmente os preceitos sacramentais.
Helena conta que em tudo o seu pai agradava à sua mãe. Participava das missas e até deixava de comer carne na sexta-feira. Mas havia algo que ela não conseguia convencê-lo a fazer: confessar-se ao padre.
(...)
No começo Helena devia estranhar... Mas depois de algum tempo passou a não entender por que um homem como seu Alexandre (o pai) tinha de se confessar. Para ela, ele não devia ter pecados, pois jamais o vira fazer nada de errado.
A insistência de dona Carolina crescia na época da Quaresma. Ele respondia que de tanto que ela e os familiares rezavam, comungavam e rezavam “um pouco chegaria para ele também”.
A garota podia pensar que a pior situação que poderia ocorrer para a mãe seria Alexandre sofrer um ataque do coração... Dona Carolina não admitiria que ele morresse sem a confissão que os enfermos devem fazer para receber a unção.
O raciocínio de Helena era simples: seu pai era um homem bom! Iria para o inferno após a morte? Seus tios e os demais homens de Diamantina eram tão piores que o seu pai! Para que tipo de inferno eles iriam?
Não pensava como a mãe, mas não esperava discutir sobre essas coisas com ela... Até porque dona Carolina não admitia discutir temas da religião.
(...)
O avô inglês de Helena morreu quando ela era ainda bem pequena... Em sua memória restavam tristes lembranças do episódio. Principalmente porque a comunidade sabia que ele não podia ser enterrado em solo sagrado da igreja católica.
Sempre que discutia com alguma colega de escola (de Mestra Joaquina), suas oponentes vociferavam que seus avós não tinham ido para “o céu dos ingleses”.
Em Diamantina muito se falava a respeito da morte de seu avô paterno... O homem estava nas últimas e as irmãs de caridade, padres e até o bispo insistiam para que ele confessasse e se deixasse batizar. Ele respondia que “Toda terra que Deus fez é sagrada”.
As autoridades religiosas queriam impedir que os sinos das igrejas fossem dobrados em honra do “Doutor Inglês”... Mas os homens mais influentes da cidade conseguiram que eles badalassem por todo o dia.
Toda cidade acompanhou o seu enterro!
(...)
Helena registra que ainda falavam a respeito da bondade de seu avô inglês... Tratava-se de um homem caridoso e por isso mesmo muito respeitado. Quando ficava sabendo que alguém sem recursos estava doente, ele mesmo enviava os remédios necessários, dinheiro e uma galinha para que se providenciasse um caldo restaurador.
A menina se perguntava se um homem com toda aquela bondade podia ir para o inferno...
(...)
Helena queria saber de seu pai o que ela podia responder às amigas quando a provocavam a respeito de o avô ter ido para o “céu dos ingleses”.
Ele respondia que ela devia dizer que era para lá (para o “céu dos ingleses”) que também iria... E devia emendar que o céu dos ingleses “é o céu dos brancos e não dos africanos”.
Mais de uma vez falaram sobre essas coisas... Helena sempre acabava dizendo que se desse crédito às palavras do pai, às falações das meninas e também às da mãe, ela é que terminaria doida.
Leia: Minha Vida de Menina. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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