O Comandante acendeu um cigarro...
Alguns dos homens se puseram a preparar o matete “para o mata-bicho” (aqui somos tentados a imaginar o matete como substância repelente; a palavra nos remete a uma iguaria da região a base de farinha de mandioca ou de milho).
O Comissário quis encerrar a discussão a respeito da necessidade da ação e dos cuidados na sua preparação. Disse que Sem Medo era o comandante e, assim sendo, o que ele dissesse todos acatariam.
(...)
Sem
Medo respondeu que o Comando era constituído por três camaradas (ele mesmo, o
Comissário Político e o Chefe de Operações). Todos sabiam que ele não era
autoritário e que tinha por norma aceitar as opiniões contrárias às suas.
O Comissário passou a
dizer que as ideias de Sem Medo prevaleciam... Explicou que sempre que ocorria
alguma divergência o Chefe de Operações votava a favor da opinião do
Comandante. Será que ele nunca notara?
Sem
Medo concordou. Disse que já percebera que as decisões do Comando vinham sendo
definidas dessa forma. Acrescentou que aquela constatação só tinha duas
explicações plausíveis: ou era porque ele era o Comandante, ou porque o outro
não levava em consideração a posição do Comissário.
A primeira hipótese era
evidente. Talvez o Chefe de Operações, estando sempre de acordo com o
Comandante, esperasse que este o promovesse. Já a segunda tinha a ver com o
fato de o Comissário ocupar cargo logo acima do seu. Talvez o Chefe de
Operações contasse com os fracassos do Comissário para tomar-lhe o posto.
(...)
O Comissário Político
pensou nas palavras do Comandante e admitiu que ele estivesse certo. Lamentou a
situação e disse que considerava o Chefe de Operações um bom militar. Era de se
notar que sempre que o Comissário não participava das operações, elas
resultavam em positivas. Por outro lado, quando ele participava, o Chefe de
Operações parecia cometer erros propositadamente só para contradizê-lo.
Sem Medo disse que o
Comissário Político devia se “habituar aos homens” em vez de aos ideais. Não
era por acaso que o seu cargo era dos mais espinhosos. Depois referiu-se aos
costumes da tribo de onde vinha o Comissário... Lembrou que, entre a sua gente,
quando o caso era de “luta por posição de prestígio”, até se esqueciam que
pertenciam à mesma tribo.
Essas palavras
fizeram o Comissário exclamar que havia, sim, tribalismo. Depois, referindo-se
às origens do Comandante, garantiu que entre os kikongos não era diferente.
Sem Medo quis saber se o Comissário Político pensava mesmo daquela forma...
Levava em consideração origens tribais? Ele, um kikongo; o Comissário, um kimbundo...
O Comissário tratou de antecipar que entre eles as relações não eram
pautadas com base no tribalismo. Mas não podiam deixar de considerar que ambos
faziam parte de uma minoria que já não se importava com as fronteiras de sua
aldeia... Esse raciocínio os levava a não mais reparar nas diferenças entre as
várias outras aldeias...
Os dois líderes do movimento guerrilheiro sabiam
que não era assim que pensava a maioria dos angolanos. Muitos ainda limitavam
suas concepções e “visão de mundo” àquelas compreendidas por suas aldeias de
origem.
(...)
Sem Medo ressaltou
que o trabalho do Comissário Político também consistia em mostrar aos
guerrilheiros as inúmeras aldeias dos caminhos. Isso devia ser feito
exaustivamente até o ponto de eles se confundirem e não terem mais condições de
retornar àquelas de onde partiram um dia.
Essa “desorientação” não poderia ser chamada de “formação política”?
(...)
Como vemos, o
Comandante problematizava a fragmentação social do país e também as tarefas dos
integrantes do movimento guerrilheiro. Nem todos podiam entendê-lo porque se
apegavam a manuais (esse devia ser o caso do Comissário Político e do Chefe de
Operações) ou porque não levavam em conta essas reflexões no processo de luta
armada contra a exploração dos tugas, o imperialismo ou a injustiça que
observavam (esse era o caso dos demais guerrilheiros).
Como
veremos mais adiante, essa questão do tribalismo estava enraizada no modo como
cada um encarava a vida e os demais viventes.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/05/mayombe-de-pepetela-mais-sobre-o.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto