terça-feira, 13 de novembro de 2012

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – Evangelho de Mateus (25:41-46); "Historia Del Giudicio" e a “religião prática” de Menocchio

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html antes de ler esta postagem:

Dizia-se que Menocchio sempre discutia com todos os que encontrava em Montereale e que afirmava que se baseava na Bíblia em vernáculo. Porém, durante os interrogatórios, ele fez poucas referências à Escritura. Para tipos como ele, os evangelhos apócrifos e canônicos estavam num mesmo patamar... Defendiam que os textos escritos por humanos eram passíveis de comentários de qualquer um que se apropriasse de determinadas interpretações.
Textos baseados em apócrifos, como o Fioretto della Bibbia eram familiares ao acusado. Citando Historia Del Giudicio, Menocchio sustentou que “amar ao próximo é preceito mais importante do que amar a Deus”... Sua conclusão era a de que, no dia do Juízo, Deus sentenciará a cada um de acordo com o bem que tenham feito (ou não) “àqueles que não tinham o que comer, estavam sedentos por água, estiveram nus, ou na prisão”... Ele legitimava o seu posicionamento citando trecho do Giudicio em que o próprio Deus diz: “Eu era aquele pobre”. Ginzburg apresenta a passagem de Historia Del Giudicio e explica que trata-se de “reprodução prosaica” do Evangelho de Mateus (25:41-46)... Neste ponto, ele destaca que Menocchio se apropria do texto sem omitir determinadas passagens (como ocorreu no episódio em que argumentou sobre a filiação natural de Jesus)... Aqui o acusado ressalta que “se Deus é o próximo (...) é mais importante amar ao próximo do que a Deus”...
Os grupos heréticos da Itália compartilhavam dessa “religiosidade prática”. O texto cita o bispo anabatista Benedetto d’Asolo e seus ensinamentos sobre o “dia do Juízo” (quando a passagem do Evangelho de São Mateus se confirmará)...
Percebemos essa “religiosidade prática” exemplificada de diversas formas nas palavras do próprio acusado... Assim, ele disse que blasfemar não seria pecado porque não atinge o próximo; a atitude blasfema faz mal apenas para quem a pratica... A título de esclarecimento do exemplo anterior, ele também disse que “se uma pessoa possui uma manta e decide desmanchá-la, acaba prejudicando somente a si mesma”... Então, se não faz mal ao próximo, não comete pecado... Outro exemplo que citou foi o de um pai com vários filhos (se um deles amaldiçoa o progenitor, este pode perdoá-lo, mas se um dos filhos “quebra a cabeça” de outro, o pai não pode perdoá-lo, e o delito deve ser punido)...
Disso concluímos que, para Menocchio, “a relação com Deus” torna-se irrelevante quando comparada aos compromissos éticos que as pessoas devem ter umas com as outras... “Deus é o próximo”, e não uma entidade inacessível.
Para ele a religião estaria reduzida a essas normas fraternas de convivência? Bartolomeo di Andrea testemunhou que Menocchio afirmava ensinar “a não fazer o mal, a não roubar o que é dos outros”... Mas no interrogatório de 1º de maio (1584), perguntado sobre quais seriam as “obras de Deus” (há que se destacar que Menocchio falara de “boas obras” com quem conversou), ele respondeu “amá-lo (Deus), adorá-lo, santificá-lo, reverenciá-lo, agradecer-lhe, e é preciso que se seja caridoso, misericordioso, pacífico, amoroso, honrado, obediente aos superiores, se perdoem as injúrias e se cumpram as promessas... Fazendo isso, se vai para o céu e isso basta para que se chegue lá”.
Às autoridades a complicação desse juízo revela-se no ponto em que o acusado mostrava que os deveres que as pessoas têm para com o próximo são tão (ou mais) importantes que os deveres em relação a Deus... Quiseram saber dele quais seriam as “más obras” que alguém possa praticar e, sobre isso, ele falou de sete obras que “desagradam a Deus” e fazem muito mal ao mundo e aos filhos de Deus, ao mesmo tempo em que agradam ao demônio: “roubar, assassinar, cometer usura, crueldades, desonra, vitupério e homicídio”... Menocchio não sabia dizer quais eram os mandamentos de Deus... Respondeu que o que havia dito expressava o que pensava ser os mandamentos, e completou com um “Evocar o nome de Deus, santificar as festas não são preceitos de Deus?” E um “Isso eu não sei”.
Ginszburg cita texto de cinquenta anos antes, Alcune ragione del perdonare, de Tullio Crispoldi (colaborador do bispo de Verona, Gian Matteo Gilberti), que afirmava que a essência da religião estava na “lei do perdão”... No limite, essa máxima leva-nos a considerar que ela satisfaz a condição imediata e “mundana” das pessoas... Lei de Deus que cai na medida certa àqueles que fazem injúrias ao próprio Deus, mas que, “vivendo em comunidade e amando e perdoando uns aos outros”, reconhecem a sua bondade... O texto levanta a possibilidade de o culto a Deus correr perigo... Mais ou menos o que ocorria com as deduções de Menocchio, embora isso não seja garantia de que ele tenha lido em algum momento o texto de Crispoldi.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_14.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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