Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_13.html antes de ler esta postagem:
É preciso tecer considerações sobre Cavallier
Zuanne de Mandavilla (As viagens de
sir John Mandeville)... As autoridades não se conformavam que um simples
moleiro tivesse tanto a dizer sem que suas opiniões acerca das coisas da
religião e cosmogonia fossem produto de doutrinação recebida de
companheiros. Então os inquisidores queriam nomes... Sabemos as repostas de
Menocchio a essas indagações... Ele afirmara que tudo saíra de sua cabeça e, em
Portogruaro (por ocasião da reabertura do processo), disse que suas opiniões
deviam-se à leitura “daquele Mandavilla”... E em carta citou que (em segundo
lugar) seus erros deviam-se à leitura “do Mandavilla”, “de tantas raças e tão
diversas leis”.
Ginzburg destaca que o
texto em francês data do século XIV e que sua autoria é de um fictício sir John
Mandeville... Textos geográficos e enciclopédicos medievais (entre eles o de
Vincente de Beauvais)... O conteúdo circulou manuscrito durante muito tempo até
que foi impresso em latim e outras línguas europeias. O texto pode ser dividido
em duas partes. A primeira apresenta-se como guia sobre a Terra Santa. Ela
revela detalhes e conclui-se que, de fato, sua redação seja resultado de
experiências vivenciadas por peregrinos. A segunda parte narra uma longa viagem
ao Oriente desconhecido. Lugares distantes geograficamente (e também da
imaginação dos europeus daqueles tempos) são descritos... Descrições
fantásticas (e fantasiosas) de lugares imaginários... Algumas ilhas, a Índia, o
Catai (China) e até o mítico reino do Preste João (muito comentado e idealizado
por nobres e camponeses).
A leitura da primeira parte
proporcionava um conhecimento acerca de trajetos, principais locais e relíquias
a serem visitadas pelos peregrinos cristãos em viagem à Terra Santa. Várias
dessas informações, sobretudo as que diziam respeito às relíquias, eram
desprezadas por Menocchio. Interessavam-lhe principalmente as descrições acerca
dos rituais da “Igreja Grega” e dos hábitos religiosos dos cristãos que vivam
na região e que eram apartados da Igreja Católica Romana. São citados os
samaritanos, os jacobitas, os sorianos e georgianos.
A ideia de Menocchio sobre
o Sacramento da Confissão, por exemplo, bem pode ter sido articulada a partir
da leitura sobre a doutrina dos jacobitas, assim chamados por terem sido
convertidos por São Tiago (Jacopo)... No Mandavilla
leu que os jacobitas só se confessavam a Deus. Há a descrição sobre um ritual
no qual o cristão se envolvia numa fumaça para confessar-se a Deus implorando a
sua misericórdia... Sobre uma fogueira eram queimados incensos e outras
substâncias aromáticas... Mandeville definia esse ritual de confissão como “natural
e primitivo”, e reconhecia a orientação de papas e religiosos da Igreja para
que a confissão do cristão se desse perante o sacerdote (a este) a partir de um
exame de consciência... Era preciso conhecer a natureza do pecado para que a
penitência ideal fosse indicada.
Em postagem anterior, vimos que Menocchio considerava a confissão a um
sacerdote tão significativa quanto à confissão a uma árvore (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html)... Ele disse ainda
que as pessoas só procuravam o religioso porque não sabiam as penitências
adequadas aos pecados cometidos... Se uma árvore conhecesse a penitência daria
no mesmo...
Também no Mandavilla, o moleiro teve acesso a princípios
da religião dos maometanos... Citando o Alcorão, o viajante destacava que Jesus
havia sido um profeta muito importante, “o mais excelente e próximo de Deus”...
Vimos que em seus depoimentos, Menocchio levava em consideração a possibilidade
de Jesus ter sido apenas um bom homem comum, como tantos outros profetas que
Deus havia mandado ao mundo para fazer pregações...
Menocchio não admitia a
crucificação de Jesus... E também essa convicção ele extraíra da leitura de Mandavilla... A crucificação contrariava
a Justiça de Deus... Sua grande Justiça “não poderia fazer nada sofrer”... Para
ele, Jesus retornou para junto de Deus e junto a Ele julgará o mundo... Então o
crucificado seria Judas Iscariotes, que os judeus teriam confundido com
Jesus...
Não é de estranhar
que Menocchio sustentasse ideias muito próximas a essas e, acerca dessas
temáticas, havia testemunho que confirmava que ele proferiu que “não é verdade que
Cristo tenha sido crucificado, mas sim Simão de Cirenaica” e “parecia-me
inacreditável que um senhor se deixasse prender assim e por isso eu duvidava
que, tendo sido crucificado, fosse Deus; talvez algum profeta...”
No referido livro, de duzentos anos antes da
existência de Menocchio, lê-se as críticas de um sultão aos cristãos, vistos
como displicentes, pois, em sua opinião, não seguiam os exemplos de
simplicidade, caridade e mansidão deixados por Jesus... Em vez disso deixavam
de fazer o bem às pessoas comuns; não frequentavam o templo e não serviam a Deus;
viviam bebendo em tavernas onde comiam feito animais. O sultão não entendia como
os cristãos pudessem viver de modo tão contrário à doutrina da qual se diziam
seguidores, Já que se mostravam inclinados a fazer o mal, viver cobiçando
coisas alheias e sem se importar em vender filhos, irmãos e a própria mulher...
Essas “palavras do sultão” reforçavam as críticas de Menocchio à Igreja.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_21.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto