quarta-feira, 14 de novembro de 2012

“O Queijo e os Vermes”, de Carlo Ginzburg – leituras de Menocchio em "Cavallier Zuanne de Mandavilla” (As viagens de sir John Mandeville); rituais de confissão entre os jacobitas; críticas maometanas aos comportamentos dos cristãos neste livro

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_13.html antes de ler esta postagem:

É preciso tecer considerações sobre Cavallier Zuanne de Mandavilla (As viagens de sir John Mandeville)... As autoridades não se conformavam que um simples moleiro tivesse tanto a dizer sem que suas opiniões acerca das coisas da religião e cosmogonia fossem produto de doutrinação recebida de companheiros. Então os inquisidores queriam nomes... Sabemos as repostas de Menocchio a essas indagações... Ele afirmara que tudo saíra de sua cabeça e, em Portogruaro (por ocasião da reabertura do processo), disse que suas opiniões deviam-se à leitura “daquele Mandavilla”... E em carta citou que (em segundo lugar) seus erros deviam-se à leitura “do Mandavilla”, “de tantas raças e tão diversas leis”.
Ginzburg destaca que o texto em francês data do século XIV e que sua autoria é de um fictício sir John Mandeville... Textos geográficos e enciclopédicos medievais (entre eles o de Vincente de Beauvais)... O conteúdo circulou manuscrito durante muito tempo até que foi impresso em latim e outras línguas europeias. O texto pode ser dividido em duas partes. A primeira apresenta-se como guia sobre a Terra Santa. Ela revela detalhes e conclui-se que, de fato, sua redação seja resultado de experiências vivenciadas por peregrinos. A segunda parte narra uma longa viagem ao Oriente desconhecido. Lugares distantes geograficamente (e também da imaginação dos europeus daqueles tempos) são descritos... Descrições fantásticas (e fantasiosas) de lugares imaginários... Algumas ilhas, a Índia, o Catai (China) e até o mítico reino do Preste João (muito comentado e idealizado por nobres e camponeses).
A leitura da primeira parte proporcionava um conhecimento acerca de trajetos, principais locais e relíquias a serem visitadas pelos peregrinos cristãos em viagem à Terra Santa. Várias dessas informações, sobretudo as que diziam respeito às relíquias, eram desprezadas por Menocchio. Interessavam-lhe principalmente as descrições acerca dos rituais da “Igreja Grega” e dos hábitos religiosos dos cristãos que vivam na região e que eram apartados da Igreja Católica Romana. São citados os samaritanos, os jacobitas, os sorianos e georgianos.
A ideia de Menocchio sobre o Sacramento da Confissão, por exemplo, bem pode ter sido articulada a partir da leitura sobre a doutrina dos jacobitas, assim chamados por terem sido convertidos por São Tiago (Jacopo)... No Mandavilla leu que os jacobitas só se confessavam a Deus. Há a descrição sobre um ritual no qual o cristão se envolvia numa fumaça para confessar-se a Deus implorando a sua misericórdia... Sobre uma fogueira eram queimados incensos e outras substâncias aromáticas... Mandeville definia esse ritual de confissão como “natural e primitivo”, e reconhecia a orientação de papas e religiosos da Igreja para que a confissão do cristão se desse perante o sacerdote (a este) a partir de um exame de consciência... Era preciso conhecer a natureza do pecado para que a penitência ideal fosse indicada.
Em postagem anterior, vimos que Menocchio considerava a confissão a um sacerdote tão significativa quanto à confissão a uma árvore (ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/10/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg.html)... Ele disse ainda que as pessoas só procuravam o religioso porque não sabiam as penitências adequadas aos pecados cometidos... Se uma árvore conhecesse a penitência daria no mesmo...
Também no Mandavilla, o moleiro teve acesso a princípios da religião dos maometanos... Citando o Alcorão, o viajante destacava que Jesus havia sido um profeta muito importante, “o mais excelente e próximo de Deus”... Vimos que em seus depoimentos, Menocchio levava em consideração a possibilidade de Jesus ter sido apenas um bom homem comum, como tantos outros profetas que Deus havia mandado ao mundo para fazer pregações...
Menocchio não admitia a crucificação de Jesus... E também essa convicção ele extraíra da leitura de Mandavilla... A crucificação contrariava a Justiça de Deus... Sua grande Justiça “não poderia fazer nada sofrer”... Para ele, Jesus retornou para junto de Deus e junto a Ele julgará o mundo... Então o crucificado seria Judas Iscariotes, que os judeus teriam confundido com Jesus...
Não é de estranhar que Menocchio sustentasse ideias muito próximas a essas e, acerca dessas temáticas, havia testemunho que confirmava que ele proferiu que “não é verdade que Cristo tenha sido crucificado, mas sim Simão de Cirenaica” e “parecia-me inacreditável que um senhor se deixasse prender assim e por isso eu duvidava que, tendo sido crucificado, fosse Deus; talvez algum profeta...”
No referido livro, de duzentos anos antes da existência de Menocchio, lê-se as críticas de um sultão aos cristãos, vistos como displicentes, pois, em sua opinião, não seguiam os exemplos de simplicidade, caridade e mansidão deixados por Jesus... Em vez disso deixavam de fazer o bem às pessoas comuns; não frequentavam o templo e não serviam a Deus; viviam bebendo em tavernas onde comiam feito animais. O sultão não entendia como os cristãos pudessem viver de modo tão contrário à doutrina da qual se diziam seguidores, Já que se mostravam inclinados a fazer o mal, viver cobiçando coisas alheias e sem se importar em vender filhos, irmãos e a própria mulher... Essas “palavras do sultão” reforçavam as críticas de Menocchio à Igreja.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_21.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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