Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_14.html antes de ler esta postagem:
Não é de se admirar que um tipo como Menocchio
tenha ficado tão impressionado (e encantado mesmo) com as narrativas de
Mandeville. A descrição da pequena ilha de Chana, “próxima” à Índia, chamava à
atenção para a variedade de crenças e costumes religiosos do lugar... Tudo
muito diferente do que ele conhecia em seu pequeno universo limitado a
Montereale, Pordenone...
Lugares fantásticos como a
Índia, Catai (China) e ilhas onde viviam canibais e povos muito diferenciados como
os pigmeus, despertavam a imaginação de quem lia o texto... Sobre os pigmeus, Il Cavallier Zuanne de Mandavilla
destacava sua baixa estatura (em torno de três palmos) e que, por isso mesmo,
eram belos e graciosos. Curiosa era a informação de que viviam por apenas seis
ou sete anos (quando já eram considerados bem velhos)... Casavam-se com menos
de um ano e aos três já procriavam... A terra não era por eles trabalhada, pois
para a lavoura exploravam tipos de “estatura normal”, “gente grande” que
desprezavam. Mandeville destaca que, muito provavelmente, os europeus também desprezariam
aos pigmeus... A narração explica que aquele pequeno povo era especialista no
cultivo da seda e algodão, sendo excelentes tecelões.
Conhecer essas narrativas
levavam o moleiro a refletir sobre suas crenças e convicções... “Tantas raças,
e (...) tão diversas leis”, “muitas ilhas, cada uma vivendo à sua maneira”, “(...)
uns acreditando de um modo, outros de outro”... Essas considerações foram
repetidas em várias ocasiões por Menocchio durante o processo. Ginzburg destaca
que, na mesma época, Michel de Montaigne também havia se encantado com os
relatórios sobre os índios do continente americano. Evidentemente Menocchio não
era nenhum “iluminista”... Suas limitações levavam-no a se apropriar daqueles
textos de modo a idealizá-los e a por em dúvida as estruturas sociais,
políticas e religiosas de seu meio.
O capítulo CXLVIII das “viagens de Mandeville” (Da ilha de Dundina onde se comem uns aos outros quando não podem
escapar, e do poder do seu rei, o qual é senhor de 54 outras ilhas, e dos muitos
tipos de homens que vivem nessas ilhas) despertava o interesse, a
curiosidade e o encantamento de Menocchio. Entre as informações que mais lhe
chamavam a atenção estavam relacionadas ao modo de lidarem com as doenças de
entes e amigos queridos. Um “padre da religião” era procurado para que um ídolo
enfeitiçado fosse consultado... O texto
destaca que alguma entidade maligna revelava se o doente escaparia ou não da
morte e, quando era o caso, ensinava o modo de curar o enfermo. Se a revelação
sobre a doença indicasse que a morte era certa para o doente, o padre
acompanhava os que o atendiam para asfixiá-lo com um pano. Depois de morto, seu
corpo era cortado em pedaços e todos os amigos e parentes apareciam para rezar
e se alimentar do corpo sem vida e enterrar os seus ossos... Tudo isso ocorria
em um clima de muita festividade, ao som de instrumentos musicais e cantorias.
Parentes e amigos do morto que não participassem dessa cerimônia eram
desprezados por isso, e deixavam de ter a consideração dos familiares do defunto...
Alimentavam-se
da carne para livrar o morto de seus sofrimentos. Quando a carne era magra, os
parentes e amigos concluíam que cometeram um erro (um pecado) ao permitirem que
aquela pessoa definhasse e “sofresse tanto sem razão”. Quando a carne era gorda
ficavam satisfeitos porque isso era um sinal de que o morto não havia sofrido e
logo iria para o Paraíso.
Os registros do
interrogatório de 22 de fevereiro de 1584 dão conta que Il Cavallier Zuanne de Mandavilla chegou até Menocchio emprestado pelo
capelão Andrea da Maren... Em resposta às autoridades, o moleiro sintetizou o
texto dizendo tratar-se de uma “viagem para Jerusalém e de algumas divergências
entre gregos e o papa; (...) do grande Khan, da cidade de Babilônia, do Preste
João, de Jerusalém e de muitas ilhas onde uns vivem de um modo e outros de
outro”. Ressaltou que o cavaleiro conversou sobre os padres, papas e demais
religiosos com o sultão... Este teria esclarecido que Jerusalém era dos
cristãos, mas devido ao mau governo destes e do papa, “Deus a retirou deles”...
Mesmo sendo interrompido
algumas vezes, o moleiro citou a parte sobre o canibalismo e contou que “procuravam
o padre quando necessitavam saber como curar uma doença ou se ela traria a
morte; se esse fosse o caso, o padre sufocava o adoentado, que morria e tinha o
seu corpo retalhado para que fosse comido pelo religioso, parentes e amigos do
morto; se a carne tinha um bom sabor, o morto não tinha pecados e estava salvo
espiritualmente; se a carne era ruim, significava que o morto havia sido um
pecador e que seus amigos e parentes haviam feito mal em permitir que ele
vivesse por tanto tempo”... O moleiro concluiu daí que, após a morte, a alma
também morria... “Uns creem de um modo e outros de outro”.
Fica
claro que Menocchio, também nesse caso, fizera uma interpretação em que frases
e palavras do texto sofreram uma adaptação para que se encaixassem em seus
conceitos... Assim, a “carne magra do morto” era avaliada como “ruim de ser
comida”; “a carne gorda”, por outro lado, seria “boa de ser comida”... Daí resultando que “a carne boa de ser
comida” sinalizava que o morto não tinha pecados, e “a carne ruim de ser comida”
era um sinal de que o morto estava cheio de pecados... Para Menocchio, “Paraíso
e inferno” são desta terra, e a alma é mortal”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2012/11/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_28.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto