Talvez
seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-giovanni-boccaccio-o.html
antes de ler esta postagem:
Em “A Primeira Jornada” (Pampineia) conhecemos
os horrores provocados pela peste. É o autor quem chama a atenção das
“adoráveis mulheres” (a quem o texto é oferecido) para o início da obra que
poderá ser interpretado como triste e maçante... Considerações sobre a peste
que tantos males provocou podem trazer lembranças muito desagradáveis aos que a
ela sobreviveram. Porém os leitores não devem desanimar. Devem prosseguir rumo
aos conteúdos mais agradáveis... Boccacio promete breves, porém necessárias,
palavras sobre os tristes episódios (sobre isso ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-boccaccio-interesse-pelo.html).
Ele faz referência à
chegada da peste à cidade de Florença (a “mais bela das cidades da Itália”) no
ano 1348... A doença que chegava aos viventes italianos havia atingido
inicialmente o Oriente... As pessoas comuns interpretavam-na como um castigo
divino... A "iniquidade reinante" sofreria expiação. Por onde passava, a praga
aterrorizava, levando milhares à morte.
Boccacio garante que a
cidade havia passado por prevenções, e funcionários foram contratados
especificamente para tratar da limpeza... Doentes foram impedidos de ingressar
em seu perímetro, e os habitantes receberam orientações diversas sobre a
preservação de uma condição sanitária satisfatória. Isso à parte, também há que se ressaltar as súplicas dirigidas a Deus por pessoas pias e devotas.
No Oriente, quando uma vítima de peste começava a sangrar pelo nariz era
sinal de morte certa... No começo da infecção, em Florença, notou-se vítimas
masculinas e femininas sofrerem inchaços nas virilhas e axilas. Esses inchaços
atingiam diferentes volumes nos infectados, e eram chamados de bubões pelas
pessoas comuns... Aos poucos outras partes do corpo eram atingidas pelos
tumores... Manchas negras substituíam as protuberâncias (daí o nome da doença),
e elas eram notadas em todo corpo do adoecido... Assim como os bubões, elas
variavam de tamanho. Em quaisquer dos sintomas, os familiares e pessoas
conhecidas do infectado sabiam que eles significavam a chegada da morte para o
adoecido.
Não havia remédio para a
doença. Nenhuma forma de tratamento resultava em cura... Os remédios
providenciados não provocavam nenhuma melhora, então imaginava-se mesmo que a
doença fosse definitiva... Apareceram curandeiros, curiosos e “cientistas” que
nunca haviam tido aula de medicina, candidatos a dar solução ao grave problema de
saúde pública... Mas não se produziam resultados positivos, e a morte chegava
ao contagiado depois de três dias de infecção... É certo que, para alguns, a
morte tardava um pouco mais a chegar... Muitos morriam sem que tivessem
contraído febre... A peste, além de tudo, era “misteriosamente violenta”.
Conviver com adoecidos
tornou-se um problema. Todos sabiam que a contaminação era certa, “assim como
fogo se espalha às coisas secas ou untadas”. A contaminação podia ocorrer
através de simples conversa com o enfermo, ou até se houvesse contato com suas
vestes. Dessa forma, tratar os doentes era arriscado demais para os sãos, que
se contagiavam em pouco tempo...
Boccacio relata ter
visto muitas situações de desespero provocadas pela doença. Em uma ocasião, viu
que as roupas de uma das vítimas da peste foram atiradas à rua... Dois porcos
começaram a farejá-las, mordê-las e sacudi-las... Uma hora depois, os dois
animais entraram em convulsão e, como se envenenados estivessem, morreram ali
mesmo.
Não demorou e os não
contaminados passaram a evitar, de todas as formas, os enfermos... Sentiam nojo
dos adoecidos... Não foram poucos os que procuraram formar grupos de “pessoas
saudáveis” e se isolaram para garantir sua saúde. Esses trancavam-se em
residências onde a doença não se manifestara... Passavam a levar uma vida sem
extravagâncias, alimentavam-se do essencial e de bons vinhos... Entretinham-se
do modo que podiam e evitavam saber notícias da realidade externa.
Houve os que
pensassem de modo diferente e, em vez da reclusão, procuraram extravasar seus
sentimentos. Perambulavam de uma parte a outra, rindo e bebendo muito,
satisfazendo apetites que guardavam em segredo... Agiam sem reservas ou
precauções porque avaliavam que bem pouco restava por viver... Faziam questão de encontrar outros tipos para manifestar suas opiniões sobre os ocorridos...
Casas
abandonadas eram ocupadas por aqueles que a elas chegassem... Todos procuravam
afastar-se o mais que podiam dos adoecidos.
A cidade, outrora uma joia, ficou largada. Não
se viam mais autoridades civis ou religiosas... As funções administrativas não eram exercidas
porque os responsáveis por elas estavam mortos, adoecidos ou aflitos pela perda
de seus familiares. Sendo assim, os viventes estavam apartados de obrigações.
Grupos sem escrúpulos podiam viver do jeito que bem entendiam...
Podemos dizer que entre os
dois tipos de comportamentos citados anteriormente (os “comedidos reclusos” e
os “extravagantes”) havia os grupos moderados, que não exageravam em seus
modos. Vagavam, sim, de um lugar a outro, e por onde perambulavam eram vistos
carregando flores e ramos aromáticos para afastarem de si os odores da peste,
dos corpos adoecidos ou mortos, e dos remédios.
Muitos grupamentos humanos
se deslocavam deixando o lugar onde viviam “antes que a peste os alcançasse”...
Pensavam que a cólera divina talvez houvesse escolhido determinados perímetros
e atingiria a todos os que neles insistissem em permanecer... O melhor que os
não contaminados tinham a fazer era seguir o exemplo dos que decidiam partir.
Os antigos hábitos familiares de boa vizinhança e de camaradagem foram
sendo desprezados aos poucos. Os parentes não mais se visitavam... Os que se
contaminavam eram abandonados à própria sorte, pois o medo de contrair a doença
era maior do que qualquer altruísmo.
Não
é preciso dizer que também a criadagem tornou-se escassa... Seus serviços
tornaram-se caríssimos. Ricos senhores e senhoras, quando adoecidos pagavam
somas volumosas apenas para que suas solicitações fossem intermediadas por
aqueles... Não foram poucos os que tiveram somente criados a velarem os seus
últimos instantes de existência... A escassez de criados foi tal que muitas
damas viveram momentos de intimidade jamais pensada ao terem de mostrar o corpo
desnudo a um criado (moços ou velhos), algo que em tempos comuns ocorreria apenas entre
mulheres... Para muitas das que sobreviveram à peste, essa situação resultou em
“deslizes e desonestidades”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-giovanni-boccaccio-o_29.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto