quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

“Decamerão”, de Giovanni Boccaccio – o proêmio; relatos sobre a peste em Florença; alterações dos modos de viver e enfrentar a morte

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-giovanni-boccaccio-o.html antes de ler esta postagem:

Em “A Primeira Jornada” (Pampineia) conhecemos os horrores provocados pela peste. É o autor quem chama a atenção das “adoráveis mulheres” (a quem o texto é oferecido) para o início da obra que poderá ser interpretado como triste e maçante... Considerações sobre a peste que tantos males provocou podem trazer lembranças muito desagradáveis aos que a ela sobreviveram. Porém os leitores não devem desanimar. Devem prosseguir rumo aos conteúdos mais agradáveis... Boccacio promete breves, porém necessárias, palavras sobre os tristes episódios (sobre isso ver http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-boccaccio-interesse-pelo.html).
Ele faz referência à chegada da peste à cidade de Florença (a “mais bela das cidades da Itália”) no ano 1348... A doença que chegava aos viventes italianos havia atingido inicialmente o Oriente... As pessoas comuns interpretavam-na como um castigo divino... A "iniquidade reinante" sofreria expiação. Por onde passava, a praga aterrorizava, levando milhares à morte.
Boccacio garante que a cidade havia passado por prevenções, e funcionários foram contratados especificamente para tratar da limpeza... Doentes foram impedidos de ingressar em seu perímetro, e os habitantes receberam orientações diversas sobre a preservação de uma condição sanitária satisfatória. Isso à parte, também há que se ressaltar as súplicas dirigidas a Deus por pessoas pias e devotas.
No Oriente, quando uma vítima de peste começava a sangrar pelo nariz era sinal de morte certa... No começo da infecção, em Florença, notou-se vítimas masculinas e femininas sofrerem inchaços nas virilhas e axilas. Esses inchaços atingiam diferentes volumes nos infectados, e eram chamados de bubões pelas pessoas comuns... Aos poucos outras partes do corpo eram atingidas pelos tumores... Manchas negras substituíam as protuberâncias (daí o nome da doença), e elas eram notadas em todo corpo do adoecido... Assim como os bubões, elas variavam de tamanho. Em quaisquer dos sintomas, os familiares e pessoas conhecidas do infectado sabiam que eles significavam a chegada da morte para o adoecido.
Não havia remédio para a doença. Nenhuma forma de tratamento resultava em cura... Os remédios providenciados não provocavam nenhuma melhora, então imaginava-se mesmo que a doença fosse definitiva... Apareceram curandeiros, curiosos e “cientistas” que nunca haviam tido aula de medicina, candidatos a dar solução ao grave problema de saúde pública... Mas não se produziam resultados positivos, e a morte chegava ao contagiado depois de três dias de infecção... É certo que, para alguns, a morte tardava um pouco mais a chegar... Muitos morriam sem que tivessem contraído febre... A peste, além de tudo, era “misteriosamente violenta”.
Conviver com adoecidos tornou-se um problema. Todos sabiam que a contaminação era certa, “assim como fogo se espalha às coisas secas ou untadas”. A contaminação podia ocorrer através de simples conversa com o enfermo, ou até se houvesse contato com suas vestes. Dessa forma, tratar os doentes era arriscado demais para os sãos, que se contagiavam em pouco tempo...
Boccacio relata ter visto muitas situações de desespero provocadas pela doença. Em uma ocasião, viu que as roupas de uma das vítimas da peste foram atiradas à rua... Dois porcos começaram a farejá-las, mordê-las e sacudi-las... Uma hora depois, os dois animais entraram em convulsão e, como se envenenados estivessem, morreram ali mesmo.
Não demorou e os não contaminados passaram a evitar, de todas as formas, os enfermos... Sentiam nojo dos adoecidos... Não foram poucos os que procuraram formar grupos de “pessoas saudáveis” e se isolaram para garantir sua saúde. Esses trancavam-se em residências onde a doença não se manifestara... Passavam a levar uma vida sem extravagâncias, alimentavam-se do essencial e de bons vinhos... Entretinham-se do modo que podiam e evitavam saber notícias da realidade externa.
Houve os que pensassem de modo diferente e, em vez da reclusão, procuraram extravasar seus sentimentos. Perambulavam de uma parte a outra, rindo e bebendo muito, satisfazendo apetites que guardavam em segredo... Agiam sem reservas ou precauções porque avaliavam que bem pouco restava por viver... Faziam questão de encontrar outros tipos para manifestar suas opiniões sobre os ocorridos...
Casas abandonadas eram ocupadas por aqueles que a elas chegassem... Todos procuravam afastar-se o mais que podiam dos adoecidos.
A cidade, outrora uma joia, ficou largada. Não se viam mais autoridades civis ou religiosas... As funções administrativas não eram exercidas porque os responsáveis por elas estavam mortos, adoecidos ou aflitos pela perda de seus familiares. Sendo assim, os viventes estavam apartados de obrigações. Grupos sem escrúpulos podiam viver do jeito que bem entendiam...
Podemos dizer que entre os dois tipos de comportamentos citados anteriormente (os “comedidos reclusos” e os “extravagantes”) havia os grupos moderados, que não exageravam em seus modos. Vagavam, sim, de um lugar a outro, e por onde perambulavam eram vistos carregando flores e ramos aromáticos para afastarem de si os odores da peste, dos corpos adoecidos ou mortos, e dos remédios.
Muitos grupamentos humanos se deslocavam deixando o lugar onde viviam “antes que a peste os alcançasse”... Pensavam que a cólera divina talvez houvesse escolhido determinados perímetros e atingiria a todos os que neles insistissem em permanecer... O melhor que os não contaminados tinham a fazer era seguir o exemplo dos que decidiam partir.
Os antigos hábitos familiares de boa vizinhança e de camaradagem foram sendo desprezados aos poucos. Os parentes não mais se visitavam... Os que se contaminavam eram abandonados à própria sorte, pois o medo de contrair a doença era maior do que qualquer altruísmo.
Não é preciso dizer que também a criadagem tornou-se escassa... Seus serviços tornaram-se caríssimos. Ricos senhores e senhoras, quando adoecidos pagavam somas volumosas apenas para que suas solicitações fossem intermediadas por aqueles... Não foram poucos os que tiveram somente criados a velarem os seus últimos instantes de existência... A escassez de criados foi tal que muitas damas viveram momentos de intimidade jamais pensada ao terem de mostrar o corpo desnudo a um criado (moços ou velhos), algo que em tempos comuns ocorreria apenas entre mulheres... Para muitas das que sobreviveram à peste, essa situação resultou em “deslizes e desonestidades”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/01/decamerao-de-giovanni-boccaccio-o_29.html
Leia: Decamerão. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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