Há o mito do país de Bengodi, que exagerava em relação às situações ridículas, absurdas e cômicas... Um “utopismo primitivista” que apresentava aberrações como a das corujas que defecavam casacos ou a dos asnos amarrados com salsichas... O Queijo e os Vermes cita um trecho que se mostra exemplar no que tange a comicidade daquele conteúdo:
Se alguém quiser ir
lá, ensino a rota:
embarque em Mameluco,
que é o porto,
depois navegue em mar
só de lorota
e quem lá chegue é
rei de todo corno.
Em Mondi, de 1552, Anton Francesco Doni apresentou uma utopia de
conteúdo sério no diálogo Um Mundo Novo...
Ali, o ambiente ilustrado é urbano e bem diferente dos citados anteriormente.
Sobre este Doni, destaca-se que ele publicou
Utopia, de Thomas More...
Doni apresentou o traçado de sua cidade no formato de
uma estrela, em seu centro havia o templo... Seus habitantes se revelavam
sóbrios e não se empanturravam em comilanças de “seis horas à mesa”... As
características básicas da convivência do lugar eram inspiradas nos relatos dos
viajantes... E, em comum com as narrativas sobre a Cocanha, notava-se a
relevante comunhão de bens e das mulheres... A ambiguidade da expressão “um
mundo diverso deste” possibilitava interpretar uma sociedade organizada em
ambiente (espacial) inacessível, no futuro...
Retomando as afirmações de Menocchio sobre sua crença na ideia de
diferentes povos (“tantas espécies de raças humanas...”) terem sido criados em
diferentes partes do mundo, torna-se bem provável que ele tenha tomado
conhecimento das notícias sobre a América idílica no Supplementum, de Foresti. Embora, ali, as alusões sobre “as
descobertas americanas” sejam minguadas... Ao que tudo indica, o “mundo novo,
citadino e sóbrio” de Doni não era conhecido pelo moleiro... Já em relação à
festiva Coconha, seria mais que razoável ele compartilhar das ideias contidas
no Capitolo e em outros textos.
Ginzburg destaca que os dois modelos citados anteriormente continham
elementos que podiam embasar o pensamento de Menocchio em torno de um “novo
mundo”... Na cidade de Doni a religião não apresentava ritos ou cerimônias
(apesar do lugar de destaque do templo)... Vimos que o moleiro manifestou o
desejo por uma religião simplificada voltada ao conhecimento e gratidão a Deus
e o amor ao próximo; a felicidade, fartura e ausência do trabalho na Cocanha
sem dúvida representavam atrativos aos laboriosos camponeses de vida de muitos
sacrifícios.
De fato, Menocchio disse algo sobre não se ingerir vinho “para que os
humores não caíssem”... E também condenava os hábitos de frades que, numa
refeição, comiam “o que não conseguiriam em três”... As injustiças sociais de
seu tempo eram marcadas pelos dias de fome que os muito pobres sofriam.
O conhecido poema Lamento de uno
poveretto uomo sopra la carestia é citado... Seu teor tem tom de protesto, pois
é de contraposição àquela condição:
Escavo a terra
buscando
raízes várias e
estranhas
com que untamos os
focinhos:
fosse assim toda
manhã
e bem menos mal seria.
Coisa triste é a
carestia.
As palavras de Menocchio sobre o paraíso (“é como estar numa festa”) bem
podem ter sido inspiradas nas fantasias narradas sobre a Cocanha, nesse Lamento e também em L’universale allegrezza dell’abondantia (outro conhecido poema):
Gozemos, façamos festa, / todos nós em
companhia, / que após a ímpia carestia / não nos dê mais sofrimento... / Viva o
pão e viva o trigo, / viva a riqueza e a abundância, / vamos cantar,
pobrezinhos, / pois é chegada a esperança... / Após trevas bem a luz, / depois
do mal vem o bem, / a riqueza nos conduz / e nos salva do perigo; / trigo seco
traz consigo / pois só nos mantemos com o belo pão branco e bom.
A mensagem contida aí, os relatos sobre a
Cocanha e outras “realidades ideais” (que bem poderiam estar do outro lado do
oceano), davam perspectiva diferente ao futuro, que passava a ser “menos
escatológico”: “Não o Filho do Homem no alto, sobre as nuvens, mas homens como
Menocchio – os camponeses que ele tentara inutilmente convencer, por exemplo -,
através de sua luta, deveriam ser os mensageiros do ‘novo mundo’”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/06/o-queijo-e-os-vermes-de-carlo-ginzburg_24.html
Leia: O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto