A situação de Peri e Cecília se agravou rapidamente... A menina despertou no alto da palmeira e a visão que teve foi das mais impressionantes. O goitacá explicou o que estava ocorrendo... A devastação provocada pela violência das águas levava Cecília a concluir que, sem saída como estavam, restava-lhe pedir a Deus que morressem da mesma morte.
(...)
Ela disse a Peri que já podiam morrer. Mas ele se recusou a acatar
àquela sentença e afirmou que não permitiria a morte de sua senhora...
Serenamente, Cecília quis justificar e fazê-lo ver que as águas subiam cada vez
mais. O goitacá respondeu que venceria as águas da mesma forma que vencera a
todos os inimigos... O entendimento de Cecília era de que haviam sido vencidos pela
torrente porque essa era a vontade de Deus...
Então Peri narrou uma
história indígena a respeito de um grande dilúvio.
(...)
A seu modo explicou que em tempos remotíssimos ocorreu
uma grande chuva que inundou toda a terra... Por causa dela todos subiram às
montanhas para se salvar, mas Tamandaré (que era o mais forte entre os seus)
decidiu permanecer com sua esposa na várzea...
Sobre esse Tamandaré (um “Noé indígena”), Peri destaca que Deus
falava-lhe à noite o que, durante o dia, “ele ensinava aos filhos da tribo”.
Tamandaré teria recomendado aos demais que
permanecessem na várzea como ele e a esposa. Mas ninguém quis ouvi-lo, pois
estavam inquietos pela perturbação... Assim, enquanto o povo seguiu para as
montanhas, ele e a esposa subiram no alto de uma palmeira, onde esperariam que
as águas subissem e passassem.
De fato, terra, árvores e montanhas desapareceram... A palmeira onde se
instalaram forneceu os frutos que os alimentavam durante os dias de dilúvio...
A correnteza “cavou a terra” e arrancou a palmeira, que ficou a boiar acima das
altitudes:
“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três
noites...” O casal sobreviveu.
Peri encerrou a sua narrativa dizendo que depois de muitos dias de
cessadas as tempestades, a água começou a baixar até que a palmeira voltou a fincar a várzea... Tamandaré viu o guanumbi (colibri), “desceu com sua
companheira” e povoou a terra.
(...)
Cecília ouviu as palavras de seu amigo como se a alma dele se
desprendesse de seu coração e se dirigisse diretamente ao coração dela.
Mas a água que enfrentavam já atingia a folhagem onde estavam
acomodados. Gotas agressivas começaram a ensopar as vestes de Cecília... A
menina clamou por Deus... Peri arranjou-se com os cipós e pôs-se a abalar a
palmeira pretendendo fazer com que ela se desprendesse para que flutuasse como
a do dilúvio da lenda...
Foi uma luta homérica, “luta terrível, espantosa, louca, esvairada”...
Depois de esforço ”sobre-humano”, a árvore teve suas raízes arrancadas... O
índio, que contava com seus músculos e o desejo de salvar a sua senhora, havia
lutado contra as águas e a rigidez da planta entranhada... Peri quase se
despedaçou, mas o resultado foi digno de ser classificado como obra de um
milagre.
O goitacá cumpriu sua
tarefa e retornou à cúpula da palmeira para junto de Cecília, que estava “quase
inanimada”... Ele a abraçou e sentenciou-lhe que sobreviria... Muito atordoada,
a menina respondeu que sim, viveriam, “lá no céu, no seio de Deus, junto
daqueles que amamos!”
A menina completou:
“Sobre aquele azul
que tu vês, Deus mora no seu trono, rodeado dos que O adoram. Nós iremos para
lá, Peri! Tu viverás com tua irmã para sempre!”
(...)
Peri a acalentou, bafejando-lhe a face.
“A palmeira arrastada pela
torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte”.
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto