Devemos entender que a experiência vivida pelo doutor Teodomiro, distante da turbulência revolucionária dos constitucionalistas da capital, seria por ele mesmo narrada aos companheiros de Legião Negra (Bento, Luvercy e Tião) em combate nas proximidades de Queluz... Como sabemos, é o velho Tião que, enquanto descansa no banco da praça, “puxa pela memória” aquela narrativa tão antiga.
Já a realidade da Maria é uma construção (não de todo fictícia) de Faustino, cujo mérito está em nos posicionar no centro dos acontecimentos de deflagraram a Revolução de 1932...
Na capital, a cozinheira sempre esteve atenta ao noticiário do rádio, queria entender o que se passava no país e, mais que isso, posicionava-se em relação aos fatos... Vimos que a madame, sua patroa, revelou-lhe que os tempos eram de engajamento das famílias mais tradicionais no embate contra o governo Vargas... Ela própria se apresentaria à Junta de Alistamento e, talvez constrangida, comunicou que seus empregados também deviam contribuir com a causa...
Nada do que ela disse era novidade...
Maria sabia mais a respeito da mobilização paulista do que sua patroa...
Ela prometeu que a acompanharia ao alistamento.
(...)
O texto segue alternando as duas situações: a vivenciada por Miro em
Marilândia Paulista, e o dia-a-dia de Maria na mansão de Higienópolis.
(...)
Em Marilândia, Miro estava apartado do centro dos
acontecimentos que levavam o país à guerra interna... Sem conseguir afinação
com a esposa, ele também parecia resolvido a se distanciar da sobriedade.
É claro que prosseguiu se dedicando com afinco à clínica e aos seus
pacientes, mas sua vida conjugal desmoronava... A cada fim de expediente, em
vez de retornar para o lar, permanecia em sua sala esvaziando garrafas de
uísque.
Era na solidão que Miro mergulhava em seu passado não tão distante...
Lembrava-se dos passeios com Neo...Tinha saudade do tempo em que podia curtir
bons ambientes em que se respirava “civilização superior”...
(...)
Faustino não deixa de registrar a ocasião em que Miro não quis
acompanhar Neo ao Teatro Municipal, onde os modernistas da Semana de Arte
(1922) lançariam o seu Manifesto... Para Miro, os modernistas não passavam de
“comunistas, anarquistas culturais” que destruíam a erudição de nossa cultura.
Nesse sentido, Miro comungava das ideias de Monteiro Lobato e seu artigo
na Revista do Brasil:
Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém é mais
capaz do que Pedro II. Não há nenhuma forma de governo melhor do que a sua
monarquia.
Vemos que desde muito tempo
Miro demonstrava-se simpático à Monarquia e crítico ferrenho da República... O
discurso de Rui Barbosa no Senado em 1914, para ele, era sintomático da
falência desta forma de governo em nosso país.
Mais uma vez,
Faustino seleciona o fragmento:
De tanto ver triunfar
as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a
injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem
chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.
Miro chegou a se empolgar
com a revolta tenentista em São Paulo no ano de 1924... Mas quando soube que o
pessoal liderado por Isidoro Dias Lopes (apesar de desejar a queda do
presidente Bernardes) não tinha interesse de colocar um fim à forma
republicana, definiu-se como neutro. Preferiu assistir de longe os republicanos
se devorando uns aos outros.
Ele era do tipo que, nesse sentido, combinaria
perfeitamente com as lideranças monarquistas da Frente Negra Brasileira...
Assim como o tio-avô José
do Patrocínio, também ele considerava a princesa Isabel uma santa redentora...
E entendia que, sem a sua providencial intercessão, os “indolentes negros”
jamais chegariam à libertação, já que se “acomodavam nas senzalas, onde eram
alimentados pelos senhores bondosos, caridosos, cristãos”.
(...)
Os ensinamentos preconceituosos dos livros escolares, que reforçavam a
ideia de que os negros eram “preguiçosos, indolentes e conformados” e a de que
os indígenas, ao contrário, “não se deixaram escravizar”, estavam de acordo com
os pensamentos de Miro...
E nesse sentido ele estava mais afinado com aqueles
que pretendiam aprovar “leis eugênicas”, como alguns parlamentares defensores
“da nossa bela cultura sociorracial eurocêntrica”.
E é isso mesmo... No Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e
Câmaras Municipais discutiam-se as possibilidades de isolarem a “nódoa social
afro-baiana”... Só que esse não era um debate exclusivo dos parlamentos... Ele se
fazia presente em toda a sociedade, principalmente nas cidades do interior...
Miro devia ter essa consciência...
(...)
Será que ele não percebia que Neo evitava convidá-lo a
certos eventos em clubes que não aceitavam “pessoas de cor”?
Será que ele não percebia que havia “clubes específicos para negros”? Muitas
vezes essas instituições eram incentivadas por “generosos homens brancos ricos”,
que garantiam aos negros a oportunidade de reproduzirem as festas, bailes e
práticas esportivas como as que os brancos experimentavam...
Os “beneméritos” recebiam homenagens das associações que incentivaram...
Os clubes contribuíam para a diminuição das tensões sociais... Mas é certo que
neles as pessoas conversavam muito a respeito do seu desejo de melhor educação
e vida mais digna para os filhos. Essas pessoas sempre valorizaram a informação
e o seu poder de transformação.
Não é difícil deduzir que Miro não aprovava os
clubes para negros. Por isso mesmo jamais frequentara algum deles.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto