Miro precisava arranjar algum trabalho... E é por isso que todos os dias ele deixava a pensão bem cedo.
Mas a situação não estava nada boa... Nenhuma companhia contratava porque as exportações estavam em baixa, assim os estivadores tinham de se virar com pequenos bicos ou amargar o desemprego.
(...)
Certo dia, enquanto
perambulava pelos becos nas proximidades do porto de Santos, Miro acabou se
instalando em um boteco onde marinheiros acomodados em uma das mesas riam a valer.
Esfomeado como estava, não perdeu tempo e também entrou no pequeno
estabelecimento.
No mesmo instante, ele ficou maravilhado com a bela
atendente, uma “negra retinta, cabelos ondulados, compridos, até o meio das
costas, olhos de jabuticaba, rosto e lábio finos”... A visão o fez paralisar
instantaneamente.
Os animados marinheiros que bebiam cervejas e outras variedades de
aperitivos eram norte-americanos... Entre eles havia um que não tirava os olhos
da garçonete. O moço viu quando Miro fez o seu pedido (lanche de carne assada e
suco de laranja), mas não reparou que o recém-chegado foi tomado de fascínio
pela bela jovem.
A garota também se sentiu atraída por Miro, e logo os
dois começaram a conversar com certa animação... Ele disse que estava na cidade
em busca de emprego, que estava instalado na pensão, e que não era raro
perambular de madrugada quando sentia fome...
Ela era bem tímida, mas sentiu confiança em Miro, que se espantou quando
ela falou que trabalhava sozinha e que fechava o bar às dez da noite... Ela explicou
que morava com o tio na parte de cima do estabelecimento...
Fazia dez anos que a mãe dela havia morrido... O tio (irmão da falecida)
a socorreu. Não fosse ele e a sua existência seria ainda mais dramática, já que
não tinha a quem recorrer (a mãe era solteira)...
Ela contou que o tio estava internado no hospital devido a um grave
acidente... Quando revelou que se chamava Stela Maris, Miro pôs-se a falar de
seus conhecimentos de etimologia... Explicou que o nome da bela tinha origem no
latim e que significa “estrela do mar”.
As palavras de Miro a enchiam de vaidade... Mas não era a primeira vez
que lhe falavam coisas bonitas... Ela até se lembrou de ocasião em que um
oficial da marinha angolana a comparara à rainha Ngola Nzinga Mbande.
(também conhecida como
Rainha Jinga, de acordo com Faustino, nasceu em 1583 e viveu por 80 anos... “Foi
rainha dos reinos do Ndongo e de Matamba; liderou tropas de resistência aos
invasores portugueses; converteu-se ao cristianismo e adotou o nome de Dona Ana
de Sousa; revoltou-se contra os desmandos dos colonizadores e voltou a se
rebelar; assinou tratado com a metrópole e reinseriu os ex-escravos na
sociedade angolana. Depois de sua morte, cerca de 7 mil de seus soldados foram
escravizados e enviados para o Brasil. O nome da Rainha Jinga ainda hoje é
cantado em vários folguedos populares, como a Folia de Reis).
O marinheiro que estava
interessado pela Stela Maris se aproximou... Em inglês pediu uma aguardente...
Ela não entendia absolutamente nada do que os gringos pediam... Miro traduziu a
solicitação e isso a deixou surpresa.
A moça explicou que
sempre que aqueles estrangeiros apareciam, aquele tipo especificamente se
encarregava de mostrar a ela o que eles queriam... Algumas vezes ele avançava
para o outro lado do balcão para pegar a mercadoria porque ela tinha mesmo
muita dificuldade de entendê-los.
Stela lembrou-se ainda de uma frase (give me two beers) que a deixou
muito confusa numa das ocasiões... Miro sorriu do modo como ela pronunciou e
explicou que tinham lhe pedido duas cervejas...
(...)
Estavam se entendendo, mas
o marinheiro quis saber se a aguardente estava a caminho... Miro explicou a ela
o que o rapaz pretendia... Enquanto ela se ocupou em encher o copo, o tipo se
aproximou de Miro para conversar, pois notou que ele falava inglês.
Foi assim que Miro ficou sabendo que aquele moço não
era bem um marinheiro... O tipo se chamava John Washington e, sempre
conversando em inglês, revelou que se tratava de um ativista contra o “racismo
institucionalizado” nos Estados Unidos... Na verdade era jamaicano e estava no
Brasil há duas semanas... Contou que o líder do movimento do qual participava,
Marcus Garvey, fundara a Associação Universal para o Progresso Negro, também
era jamaicano e estava preso.
Aconteceu que o pessoal que fazia parte das
células teve de fugir para escapar das perseguições policiais... Mesmo sendo um
fugitivo, John tinha umas tarefas a cumprir...
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto