Henri saiu do gabinete do juiz de instrução como se tivesse prestado depoimento consonante com a verdade. Não havia em sua fisionomia nada que gerasse dúvida contrária.
Ele seguiu para seus afazeres cotidianos sem a menor crise de consciência. Era isso mesmo o que ele esperava que ocorresse.
(...)
É verdade que ao topar com
Lambert, este não lhe sorriu... Mas era evidente que o rapaz estava chateado
porque o esperado convite para uma conversa franca não tinha se efetivado...
Isso era de fácil resolução, pois bastava saírem para jantar... Nada que ele
não pudesse arranjar... Até porque, como já dava por encerrada a questão do
perjúrio, poderia retornar ao convívio de amigos.
Era muito bom poder acertar sua papelada
normalmente... Uma carta do doutor Mardrus anunciou a cura de Paule e
solicitava que ele não a procurasse; Pierre Leverrier escrevera a respeito de
sua intenção de comprar as cotas de Lambert...
As mensagens traziam-lhe alívio... Não precisaria preocupar-se com
Paule... Poderia perfeitamente trabalhar com Leverrier, e isso significava que
não precisaria desfazer-se de L’Espoir.
Algumas folhas datilografadas informavam sobre os
problemas em Madagascar... Cerca de cem mil malgaxes haviam sido massacrados em
confronto com tropas europeias... Os deputados, que não aprovavam as rebeliões,
tinham sido presos e sofriam torturas... Nenhum periódico tratava do assunto...
Ele trataria do editorial e talvez fosse interessante enviar Vincent para a
cobertura dos fatos.
(...)
Estava envolvido nesses afazeres quando a secretária anunciou-lhe a
chegada de Truffaut...
O homem entrou agradecendo profundamente... A Justiça já havia deferido
a soltura de seu cliente... Para o advogado, se não fosse a intervenção de
Henri, dificilmente Mercier sairia vivo da prisão... No entanto ele poderia se
tornar um “novo homem” graças à absolvição.
Henri se irritou... Disse que o tipo estava livre para praticar novas
patifarias... Esclareceu que desejava apenas que não se ouvisse mais falar
daquele tipo. Truffaut respondeu que ele iria para a Indochina... Henri não
queria nem saber, desejou que ele “matasse tantos indochineses quanto franceses
fez morrer”... Que se tornasse herói por lá.
Truffaut parecia fazer questão de entregar-lhe o pacote contendo os
documentos que seu cliente havia colecionado (e que se constituíam provas
inquestionáveis contra Josette e a mãe). Henri questionou por que ele não
encaminhava o dossiê para Lucie Belhomme.
O homem respondeu que
Mercier desejava entregar os documentos àquele que o havia libertado... Mas estava
claro que para Truffaut aquilo não fazia a menor diferença, Henri podia fazer o
que bem entendesse com os papéis... Henri pensou mesmo que, como o advogado
tinha certas pendências em relação à Belhomme, ele queria provocar certo
desconforto à madame ao não entregar-lhe os documentos.
Henri quis saber se tudo o
que havia sido colecionado estava mesmo no pacote... Truffaut garantiu que sim,
e que Mercier não seria mais visto porque entendia que sua liberdade dependia
diretamente de seus humores.
(...)
De posse do dossiê,
Henri sabia que devia queimar os papéis... Mas viu-se tentado a conhecer as
fotografias e cartas em seus detalhes...
Ele abriu o pacote e logo notou cartas e relatórios escritos em alemão e
em francês... Ver Lucie ornamentada com joias, trajando vestidos provocantes e sentada
entre oficiais alemães provocava nojo... Também Josette cedia seus encantos e
sorriso aberto em meio às taças de champanhe. Isso também era bem difícil de
suportar.
As marcas dos dedos de
Henri acabaram impressas nos papéis fotográficos... A moça era uma graça só...
Jovem e bela envolvida pelos braços de seu capitão... Enquanto manipulava o
material pensava no quanto aquilo tudo provava que de fato moças como Josette
se entregavam aos inimigos que massacravam criaturas como Yvonne e Lisa.
Algumas cartas revelavam a paixão que envolveu o
casal... O alemão se esforçava para expressar em francês toda a sua devoção à
bela Josette... Henri pensou no quanto eles haviam sido felizes e como tiveram
oportunidades para se divertir... Apesar disso, o tipo parecia-lhe limitado
intelectualmente e triste... Não havia dúvida de que sua morte tivesse
provocado insegurança e depressão à Josette.
(...)
Henri reorganizou o pacote e o trancou numa gaveta... Assumiu que deveria
queimá-lo o quanto antes...
Porém não podia se esquecer de seu artigo...
Retornou à mesa para escrever sobre o massacre em Madagascar...
Ele não podia se sentir culpado por mais essa
tragédia.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/06/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir_7.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto