Várias pessoas chegaram... Elas vinham como que em cortejo; traziam o corpo de Vitória estendido numa maca.
Só então conseguimos relacionar a fuga de sua irmã da casa dos pais, e a ansiedade da menina ao apoderar-se do caderno da secretária... Só então podemos adivinhar o nome que ela procurou e riscou.
(...)
Diogo se aproximou... Os sentimentos que despertaram de seu coração eram
dúbios... Avistar a amada naquelas condições o impulsionava a matar ou a
ansiar pela própria morte?
Difícil saber.
O rapaz implorou à amada que não o abandonasse; que
não se deixasse conduzir ao “outro mundo”. A morte de Vitória significaria o
fim também para ele.
O coro de mulheres registrou o seu momento de dor. Sintetizou que quando
a “morte rasga a garganta daqueles que amamos” compreendemos amargamente que
não temos mais tempo para o amor...
(...)
Era notório que Diogo havia se desprendido dessa
relação enquanto esteve engajado na luta contra o regime de Peste... Mas havia
essa contradição... O amor voltava ao seu coração quando o destino não lhe era
mais favorável.
(...)
A situação de Vitória era muito delicada... Mas um frágil coração ainda
palpitava em seu peito. Diogo escutou o seu tímido gemido e isso o empolgou...
Enfim ela podia ouvir suas palavras de incentivo e reconhecimento por dar-lhe
força nos momentos mais difíceis. Sim! Ele jamais deixou de pensar nela enquanto
esteve em combate.
Vitória conseguiu manifestar o seu lamento. Tudo o que Diogo conseguiu
ouvir foi que, para ela, era certo que seria esquecida por ele... Teve energia
ainda para dizer que se sentia atormentada por isso naquele momento de morte.
(...)
A jovem disse isso e virou-se.
Tudo indicava que aqueles
eram os seus estertores.
Enquanto a morte a levava,
o coro de mulheres fez o comentário a respeito da “beleza real” que acabava de
deixar este mundo...
Pobre Diogo... Podia
apenas soltar a sua voz reclamando o impossível... Acusar-se equivaleria a
reconhecer o arrependimento... O corpo da bela Vitória era a sua “pátria”...
Sua memória não a resgataria.
(...)
Peste se aproximou de Diogo. Entre os dois jazia Vitória... O ditador
quis saber se o rapaz renunciava ao seu projeto político... De sua parte, Peste
desejava apenas o poder. Via que o moço estava fragilizado e com o olhar
perdido.
Diogo propôs morrer no
lugar de sua amada...
Peste desconversou e garantiu que aquelas palavras só podiam
ser resultado de sua estafa... Garantiu que o pior para Vitória já estava feito.
Diogo insistiu que sua proposta era típica daqueles que são fortes.
Mais uma vez a questão sobre “quem tem a força” foi
discutida... Peste insistiu que ele mesmo incorporava a força...
Diogo sugeriu-lhe que tirasse o uniforme militar.
O ditador disse que o rapaz só podia estar louco ao apresentar tal
proposta. Diogo o provocou ao garantir que, despidos de seus uniformes, os “homens
da força” não são nem um pouco belos.
(...)
Peste retornou ao assunto principal da conversa... Disse que “a vida tem
coisas boas”. Talvez fosse melhor o rapaz pensar a respeito de seu projeto de “morrer
no lugar de Vitória”.
Certamente o ditador arquitetava alguma manobra para reconquistar a
cidade de modo definitivo e, de alguma maneira, esperava envolver Diogo em seus
planos.
O moço explicou que sua vida era nada... As razões de viver são o que devemos
levar em consideração.
Peste enumerou algumas
situações em que os homens comuns valorizam em seu cotidiano: “o primeiro
cigarro; o odor da poeira, ao meio do dia, sobre os aterros; as chuvas da
noite; a mulher ainda desconhecida; o último copo de vinho”...
Diogo não discordou... Tudo aquilo, de fato, era
“alguma coisa”... Mas garantiu que Vitória viveria melhor do que ele.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus_28.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto