A secretária apresentou-se no mesmo instante em que foi convocada.
Sua fisionomia fatigada mudou completamente...
Enfim sua verdadeira identidade foi revelada. Seu rosto envelhecido... Ela era a própria Morte!
(...)
Peste
chamou a atenção de Morte... Reclamou que, diferentemente dele, ela não
manifestava o ódio próprio daqueles que necessitam de “vítimas frescas”.
Morte
confirmou... O ódio não a sustentava e não estava em suas funções... Argumentou
que, de certa forma, aquilo era resultado do “método” de Peste (que se apoiava
em suas fichas de organização). O tratamento dispensado aos mortais era tão
“mecânico” que se tornava impossível perceber se eles inspiravam algum tipo de
sentimento...
Peste
tinha pressa... Apontou para Diogo, que já estava de joelhos, e pediu para ela cumprir
a sua função.
Morte
deixou claro que não deixaria de exercer o seu ofício... Todavia manifestou que
não se sentia “muito à vontade”... É claro que Peste vociferou e quis saber o
motivo de suas ordens não serem prontamente atendidas.
(...)
Por
essa o ditador não esperava... Morte explicou que também possuía memória. Disse
que havia sido livre no passado, e que as pessoas a associavam ao acaso. Por
isso não a odiavam... Viam-na como a senhora “que termina tudo, fixa os amores,
que dá forma a todos os destinos”.
Que
tipo de mudança drástica se operara em Morte desde que passara a trabalhar com
Peste? Outrora podia ocorrer de manifestar compaixão... Mas a parceria com o
facínora a tornara “serviçal da lógica e do regulamento”...
(...)
Sim. Ela mesma confirmou
que os desvalidos e “menos fortes do que a desgraça” dirigiam-lhe clamores. Ou
seja, quase todas as pessoas.
Morte disse que trabalhava
no consentimento... Existia à sua maneira... Tratava-se de uma “relação
natural”, bem diferente do mecanismo adotado por Peste, que levava os viventes
listados a negá-la “até seu último suspiro”.
Essas eram as razões
que talvez explicassem a afinidade de Morte em relação ao Diogo. Ele a
escolhera livremente...
A
velha senhora disse que amava os que marcavam encontro com ela... Pode ser que
em seu interior admitissem piedade por ela.
(...)
Peste irritou-se. Vociferou
que ninguém ali precisava de piedade.
Com
serenidade, Morte respondeu que apenas “aqueles que não sentem compaixão por
ninguém” precisavam de piedade.
O
amor por Diogo podia ser entendido como a inveja que Morte sentia dele. Para os
conquistadores como Peste e ela própria, o amor tomava a miserável “forma de
inveja”.
Peste
devia saber! Era por isso que os viventes lamentavam-nos como entidades.
(...)
Aquela
que fazia o papel de eficiente secretária de Peste durante suas investidas nas
realidades dos pobres mortais teve de ouvir um “calai-vos”!
Como
que a justificar-se, ela relatou que não era difícil de entender que (de tanto
matar) terminasse amando a inocência dos sentenciados...
Morte
manifestou sua repugnância em relação às sombras... Invejava aqueles
miseráveis, e apontou para o corpo inerte de Vitória dizendo que ela voltaria a
viver “para soltar gritos de animal” (porque teria de passar o resto de seus
dias sem a companhia do amado Diogo).
Vitória viveria amargurada... Mas Morte levou em
consideração que a jovem se apoiaria no próprio sofrimento. Esse tipo de drama
era-lhe digno de inveja.
(...)
Diogo estava quase caído.
Peste o reergueu porque seu fim não podia se efetivar se Morte não o cravasse.
Estava difícil para o ditador admitir todo o
sentimentalismo que se apossou de Morte... Mas ele sabia que “o que é preciso”
seria executado, pois ela conhecia a regra e a sua função.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/10/estado-de-sitio-de-albert-camus_31.html
Leia: Estado
de Sítio. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto