A empreitada colonial no sul da África foi obra de particulares... O governo holandês não participou ou interferiu diretamente na iniciativa de colonos que se aventuraram na conquista de vastidões...
Para o autor, não era por acaso que os africânderes diziam que aquele país pertencia exclusivamente a eles... Eles se acostumaram à autogestão... Insistiam que haviam ocupado uma “terra de ninguém” (obviamente uma “mentira deslavada” ainda que os baixos índices populacionais fossem uma realidade) e, assim, cada colono tornou-se livre para “construir um país que pudesse chamar de seu”.
De fato, uma vez acomodados, os africânderes se sentiam tentados a constituir propriedades de onde não conseguissem divisar “a fumaça de chaminé de seu vizinho mais próximo”.
(...)
Na região do Cabo e também em Natal (locais de “clima
mediterrâneo” elogiados por suas belezas naturais e pela fertilidade de suas
terras propícias aos vinhedos) os boeren dedicaram-se à agricultura e à criação
de gado... Logo notaram que tribos nômades locais possuíam rebanhos bovinos... Eles
não pestanejaram ao impedir que os africanos utilizassem as terras (como faziam
há muitas gerações), além disso, roubavam o seu gado...
Nada barrava os africânderes em suas iniciativas... Não tinham de
obedecer a nenhuma prerrogativa legal externa... Cada vez mais foram se
apropriando das terras sul-africanas, onde criavam suas próprias leis... Isso
durou uns cento e cinquenta anos... O racismo, a desenfreada sede de posse e de
autogoverno marcou a “faceta africânder”.
Os escravistas obtinham a mão-de-obra que exploravam
em suas terras nos mercados locais ou a partir dos incessantes conflitos com os
nativos por “pastos adequados” pelas terras férteis (que não eram abundantes,
já que apenas umas 15% delas são “adequadas às plantações e dispensam
investimentos com irrigação”).
(...)
Os ingleses ocuparam o Cabo em 1806, tornaram-se senhores da localidade
e fizeram da cidade a capital de sua “colônia britânica”... Obviamente os
conquistadores, conhecidos por seu “eficiente burocratismo”, não aceitaram o desregrado
modo de viver dos africânderes.
É preciso entender que o tempo que separa este episódio da época em que
os africânderes se instalaram no sul da África (meados do XVII) foi marcado por
várias transformações na Europa (Liberalismo propagado pelo movimento
Iluminista, Revolução Francesa...) que os agropastoris boern não tinham a menor
ideia... Perante os modernos ingleses que chegavam, eles podiam ser comparados
a “relíquias feudais”.
Em 1836 o Parlamento inglês aboliu a escravidão... Isso contrariava a
tradição africânder duplamente... Primeiro porque o escravismo estava na base
de suas relações produtivas, depois porque sua religião ensinava que Deus havia
criado aqueles negros todos “para serem escravizados” por eles...
Essa incompatibilidade que já se anunciava desde o ano anterior explica
os motivos da grande migração (Great Trek) que resultou na fundação das
Repúblicas africânderes de Natal (1840), Transvaal (1848) e Estado Livre de
Orange (1854)... Para as difíceis marchas, os boern se organizavam em grandiosas
caravanas (havia também os que partiam solitários)...
Durante vinte anos os
fluxos migratórios mais para o norte prosseguiram... Os africânderes levavam
suas famílias, o gado e os escravos que tinham conseguido acumular.
Kapuscinski selecionou um
fragmento de texto de diário de Anna Steenkamp, escrito em 1838, primeiros
tempos do Great Trek...
A leitura nos permite
entender que a migração tinha (também) fundamentação filosófico-religiosa:
Os escravos foram alçados ao mesmo nível dos
cristãos, o que é contrário aos desígnios divinos e à ordem da natureza, que
dividiu as raças de acordo com a cor da pele. Para qualquer cristão honesto,
aquilo equivalia a ser posto de joelhos e ter os braços presos por correntes.
Por isso preferimos partir, querendo manter nossa crença na pureza da raça.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto