domingo, 27 de março de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – a respeito do tenente-coronel Yakubu Gowon; oficiais ibos, hausas e iorubas manifestavam intolerâncias também no exército; síntese da análise de Dan Zaki, jurista nigeriano, a respeito da grande quantidade de golpes de Estado na África até meados da década de 1960

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/03/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_2.html antes de ler esta postagem:

Kapuscinski escreveu mais sobre a Nigéria e a crise política.
Suas reflexões datam do segundo semestre de 1966... Todavia já fazia um bom tempo que o país era palco de agitações sociais... Os problemas de então possuíam raízes profundas e remontavam ao período colonial.
Para uma melhor compreensão do panorama nigeriano, o autor analisou os periódicos... Evidentemente a crise não podia ser explicada apenas do ponto de vista dos guias espirituais e de fanatismos religiosos... Mas não há como desprezar esse dado concreto da realidade nigeriana.
É por isso que (como ficou evidenciado na postagem anterior) o repórter dedicou alguns parágrafos de seu “A Guerra do Futebol” para repercutir os delicados eventos protagonizados por “profetas” e outras lideranças religiosas que apresentavam receituários diversos para a solução dos problemas políticos do país.
(...)
Aqueles eram dias de mudanças de governo. O tenente-coronel Yakubu Gowon, de trinta e dois anos, havia assumido o comando do país.
O repórter polonês o descreve como um tipo “esbelto, bem apessoado e muito inteligente”, uma liderança que levava vida simples, de caserna... Praticamente não deixava o quartel. Apresentou-se à coletividade por ocasião de uma entrevista, e foi só.
Era com forte esquema de segurança que circulava por Lagos... Seguia numa Mercedes verde sempre escoltada por soldados armados em jipes dotados de metralhadoras... O seu caminho era aberto por um veículo policial que se anunciava ao longe com sirene ensurdecedora. A aglomeração das pessoas nas calçadas interessadas em saudá-lo era notória.
(...)
O exército protagonizava os eventos políticos... Não era a primeira vez, e não seria a última...
Pode-se dizer que entre os militares ocorria a mesma intolerância (o ódio tribal) percebida entre os civis... Uns atiravam contra os outros! Não era por acaso que a maioria das vítimas pertencia ao exército, que estava reduzido à metade... Os jovens oficiais participavam de discussões calorosas e quando elas se tornavam brigas declaradas sempre havia quem disparasse primeiro sua arma de fogo.
Ninguém podia dar garantias a respeito da lealdade dos vários regimentos ao governo... O clima de desconfiança era muito grande... O golpe anterior havia sido marcado pela perseguição e assassinato que os oficiais da etnia ibo impuseram aos militares de origem ioruba e hausa.
O golpe que conduziu Yakubu Gowon ao poder foi uma espécie de revanche em que se viram oficiais iorubas e hausas assassinando os de origem ibo.
As precauções não eram infundadas... Entre aqueles militares nenhum conseguia uma noite tranquila de sono.
Kapuscinski compara a realidade africana (particularmente a da Nigéria) aos dramas políticos de Shakespeare em que “os heróis morrem, os tronos são cobertos de sangue e o povo contempla aquela terrível visão da morte em silêncio e com horror”.
(...)
A melhor análise recolhida por Kapuscinski foi a de um jurista nigeriano, Dan Zaki, em artigo para a “African Statesman” (uma revista quadrimestral) sobre “golpes de Estado perpetrados pelos militares na África”.
De acordo com Zaki, golpes militares passaram a ser tão frequentes nos jovens países africanos que tinham se tornado “parte integrante e inseparável da vida política” daquelas nações.

E mais:
* Os “países independentes da África estavam doentes”... Governos brutais, e ao mesmo tempo ineficientes, não davam a menor chance aos “reclamos da sociedade”... Em vez disso, habituou-se a criar mecanismos que tornavam impossível “qualquer forma legal de eles serem substituídos”;
Daí os inúmeros golpes de Estado.
* “As fronteiras da maioria dos países africanos” não eram nada mais do que resultado da arbitrariedade dos colonizadores imperialistas... Os países que surgiram após a partilha e processo de emancipação continham “diversas tribos e culturas, cujas diferenças são a fonte das tensões políticas”;
* As classes dominantes que se estruturaram nesses países (“burguesias nacionais”, de acordo com Zaki) estavam corrompidas e desprezavam descaradamente os eleitores... Por conta da arbitrariedade das mais ricas nações europeias em relação à configuração política dos territórios nacionais africanos, a crise econômica de cada um deles apenas se agravava no decorrer dos anos;
* A maioria dos políticos portava-se cinicamente despreocupada em relação à crise vivenciada pelas camadas mais simples. De um modo geral, as propagandas de governos eram marcadas por pomposos slogans supostamente calcados no “bem comum”, mas na prática sua propalada “política de investimentos” não ocorria porque “os recursos nacionais” acabavam transferidos “para as contas particulares dos políticos”;
* Enquanto o poder de compra dos salários da gente trabalhadora diminuía, o tesouro público era minado pelas sempre caras e “extravagantes viagens dos políticos e seus familiares”;
* Também os membros do parlamento envolviam-se constantemente em fraudes eleitorais e outras corrupções. Tudo isso sem serem incomodados pela imprensa, cada vez mais “medrosa, desorientada e às voltas com sofismas em vez de com comentários mais honestos e mais profundos”.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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