Ainda sobre escrivaninhas...
Kapuscinski era um crítico dos ambientes sobrecarregados de móveis... Deixou claro em seus escritos que preferia os cômodos japoneses, conhecidos como bem arejados principalmente por não serem abarrotados de móveis desnecessários.
Observando mais calmamente a escrivaninha colocada à sua disposição, garantiu que o funcionário devia se posicionar sempre com muito cuidado para evitar que ela despencasse.
No entanto ele era exceção... Muitos tinham adoração pela “biurko” (escrivaninha em polonês; “biurokracia” é o nome para burocracia) e se tornavam seus escravos... Não a largavam por nada... Ao contrário, pretendiam conquistar o direito de ocupar escrivaninhas maiores e mais imponentes.
A partir desse ponto de vista, passar de uma escrivaninha acanhada para outra maior significava “subir na vida”.
Muitos dos que começavam a trabalhar atrás de uma escrivaninha mudavam completamente... Seu linguajar, e até mesmo a sua maneira de pensar, sofriam alterações... Antigos camaradas deixavam de se falar simplesmente porque um deles tornara-se senhor de uma escrivaninha. Kapuscinski confessa que perdera muitos amigos por causa do “móvel da discórdia”.
Havia os que dividiam a humanidade em duas categorias: os que ocupam e os que não ocupam escrivaninhas... Tipos como esses ficavam inconformados ao saberem que podiam perder as suas... Kapuscinski garante que grande quantidade de suicídios era cometida pelos funcionários mais desesperados... E colocavam termo à vida junto ao estimado móvel!
O inconformado autor finaliza essas considerações garantindo que, ainda que a escrivaninha destinada a ele fosse da melhor madeira “encrustada de madrepérolas”, teria dado um jeito de voltar a trabalhar longe da sede da PAP.
Definitivamente, e isso era a conclusão a que ele havia chegado, havia coisas mais importantes do que escrever.
(...)
É por isso que, atrás daquele móvel, o melhor que
podia fazer era “se esconder” e pensar sobre as coisas importantes nas quais
devia se envolver...
(...)
No segundo semestre de
1967, Kapuscinski foi transferido para a América Latina.
O projeto consistia em
recolher (por cinco anos) reportagens sobre os países do continente agitados
politicamente por inúmeros Golpes de Estado e pelo estabelecimento de ditaduras
subservientes aos Estados Unidos no combate às lideranças socialistas e
movimentos populares tidos como subversivos.
(...)
Chegou a Santiago do
Chile...
Escreveu sobre suas impressões que destacavam características
arquitetônicas do lugar, marcado por prédios que lembram o legado espanhol...
Fez referências a Los Leones, Apoquindo e Vitacura, bairros luxuosos... Mas não
se esqueceu dos pobres casebres de madeira localizados na periferia, o ambiente
do proletariado e de muitos desocupados.
A
grande quantidade de “salões de beleza para o público masculino” chamou a
atenção do polonês... Para ele, os tipos que os frequentavam tinham ares
afeminados... Mas tempos depois, por ocasião do golpe contra Salvador Allende
(1973), os chilenos mostraram gana no combate aos inimigos da democracia.
(...)
Kapuscinski realizou busca
por apartamento onde pudesse se alojar enquanto permanecesse na capital
chilena.
Novamente
notamos apreciações críticas para “fenômenos sociológicos” em vários parágrafos
de seu “A Guerra do Futebol”... Dessa
vez elas fazem referências ao tipo mais comum de apartamento disponibilizado em
Santiago do Chile durante a década de 1960...
Vários
proprietários eram senhoras de certa idade... Ao longo de sua vida, elas
acumularam uma série de quinquilharias que acomodavam nos cômodos do imóvel
para a locação.
O
candidato a inquilino visitava o imóvel e, no caso de assinar o contrato,
recebia uma lista enorme com os dados sobre todos aqueles objetos...
Evidentemente ele se tornava responsável pela integridade daquilo.
Havia
de tudo o que se pode considerar “inútil”: “gatinhos, estatuetas, descansos,
alcatifas, quadrinhos, molduras, passarinhos de vidro, de pelúcia, de
bronze”...
Bugigangas...
Ninharias... Mas, para aquelas senhoras, se tratavam de objetos pelos quais
nutriam sentimento sacralizado... Kapuscinski notou que o cotidiano dos
chilenos da cidade era marcado por visitas a parentes e amigos, e que a cada
ocasião presenteava-se com algum “objeto inútil”...
Sendo
assim, era lógico que com o passar dos anos juntavam quantidade colossal de
“coisas totalmente desnecessárias”... Era certo que pelo menos metade das lojas
sobrevivia desse tipo de venda.
(...)
Por anos Kapuscinski vivera
em meio a africanos que tudo o que possuíam se resumia basicamente a uma enxada
de madeira.
Devemos compreender suas angústias e seu estado
de choque ao se deparar com aquele acúmulo de supérfluos...
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto