É claro que não foi por acaso que Kapuscinski “incrustou” em seu “A Guerra do Futebol” o trecho de “Tristes trópicos” (1955)... Sem dúvida, muito significativo.
Evidentemente o polonês estava se sentindo como o etnólogo franco-belga... Adoentado, e essa condição dá uma “pausa” ao seu agitado modo de ser e permite a introspecção, perguntava a si mesmo se tudo o que vivenciara na África teria valido a pena...
(...)
Kapuscinski foi transferido
para a Polônia, onde prosseguiu o tratamento em hospital localizado à Rua
Plocka, em Varsóvia...
Ele apresenta breve relato sobre o abarrotado ambiente
em que foi instalado: dois dos internados que, estavam acomodados em camas
próximas à sua, faleceram; os demais se encontravam em lastimáveis condições e,
quando não emitiam grunhidos e gemidos dolorosos, conversavam sobre os tempos
de guerra ou dormiam embalados por roncos estrondosos.
Pela janela, os que conseguiam se aproximar, podiam ver “um pátio sem
vida, o necrotério, um céu sempre cinzento e desprovido de sol e uma
arvorezinha desnuda”.
(...)
No início de 1967, Kapuscinski voltou ao trabalho...
Sentiu-se completamente desambientado no prédio da redação... Os demais
funcionários não se interessavam por ele... Ele também não via motivos para
conversar sobre sua experiência como correspondente na África.
A esse respeito, entendia que sua estada nas longínquas terras
continente abaixo do Mediterrâneo o libertara daquela “estrutura mecanizada”
que era a agência para a qual havia retornado... Seu regresso ao escritório
rendeu-lhe apenas mal estar.
Os assuntos que o pessoal discutia nas rodas de conversa não lhe diziam
respeito. Ele não tinha palavras que pudesse trocar sobre os programas de
televisão ou a respeito das curiosidades da vida dos artistas mais famosos sobre
os quais comentavam...
(...)
Não havia como a situação se reverter...
Quanto mais ouvia diálogos
pontuados por futilidades, mais Kapuscinski se sentia angustiado... Os
companheiros de escritório passavam preciosos momentos discutindo sobre as
viagens à Bulgária, as melhores férias e até sobre as oportunidades de faturar dinheiro
nessas ocasiões...Não foram poucas as vezes
em que, visto perambulando pelas calçadas da cidade, perguntaram-lhe a respeito
do que ele andava fazendo no país, sobre quando partiria novamente e para onde
seria enviado... Nessas situações, sentia-se como estrangeiro na própria
pátria.
Não era incomum um
correspondente da PAP permanecer inativo por algum tempo após retornar de uma
missão em outro continente... Eventualmente escalavam-no em substituição a
algum repórter impossibilitado de trabalhar ou para “aliviar” outro que
estivesse atarefado demais. Mas não atribuíam nenhuma tarefa a Kapuscinski.
Foi o chefe Hofman que resolveu engajá-lo num cotidiano “diferente”, que
não fosse o da “monotonia da redação”... Estava claro que ele não pretendia envolvê-lo
em novas missões arriscadas, e por isso resolveu colocá-lo atrás de uma
escrivaninha numa sala onde seria auxiliado por uma secretária datilógrafa.
O efeito que a sala
provocou no ânimo de Kapuscinski não foi o que Hofman esperava. O autor de “A
Guerra do Futebol” tinha horror às escrivaninhas, e a sala colocada à sua
disposição despertou em seu interior toda a aversão que sentia pelo “burocratismo”.
(...)
O polonês dispensou alguns parágrafos
para tecer considerações sobre o móvel que considerava símbolo de decadência...
Não se conformava com os tipos que ambicionavam a condição de “funcionários de
escrivaninhas”.
De certo modo, criticava o governo que
abarrotava departamentos públicos de “escrivaninhas ratoeiras”, como aquela que
o seu chefe lhe entregara. Diferentemente dos demais, ele não considerava que
um móvel pudesse tornar a pessoa mais digna... Em sua opinião, os tipos que se
sujeitavam a permanecer por longas horas numa escrivaninha assumiam feições
típicas dos “inválidos”.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto