sábado, 28 de maio de 2016

“A Guerra do Futebol”, de Ryszard Kapuscinski – pobre camponês salvadorenho atingido por tiro disparado por hondurenhos passou por “cirurgia” na enfermaria improvisada no meio da selva; jovem soldado desconhecido e sua agonia final; debandada em pleno tiroteio, cada um por si; de frente com um soldado

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/05/a-guerra-do-futebol-de-ryszard_28.html antes de ler esta postagem:

Kapuscinski destaca dois atendimentos dispensados pelos enfermeiros daquele remoto e precário campo no meio da mata de Santa Rosa...
(...)
O primeiro deles foi a um camponês salvadorenho que estava ferido com um balaço no joelho. Um caminhão do exército hondurenho o trouxera... Certamente os militares pretendiam interrogá-lo, mas era necessário extrair o projétil antes que algo mais grave se sucedesse com o prisioneiro.
O tipo estava completamente arrasado, sem camisa e descalço... Sangrava muito... Deitado sobre a relva, ele esboçou um gemido, mas foi silenciado pelo enfermeiro que fazia as “cirurgias”.
O enfermeiro enfiou os dedos na ferida aberta e puxou a bala... Despejaram iodo no local e ajeitaram uma bandagem. O camponês não conseguia caminhar, mas forçaram-no a seguir o mais rápido que podia para cima do caminhão... Alguns jornalistas tentaram ajudá-lo, porém foram impedidos pelos soldados.
Com muita dificuldade, atirou-se sobre a carroceria do veículo. Resignado, o homem sabia que nada podia esperar do futuro. Completamente entregue aos algozes, sussurrou que “gostaria de uma tragada”... Os jornalistas atiraram-lhe todos os cigarros que tinham... Fizeram isso sem que os soldados percebessem.
O caminhão partiu levando o desgraçado camponês... Por mais contraditório que possa parecer, ele parecia se sentir feliz por causa dos cigarros.
(...)
O segundo caso foi o atendimento a um jovem uniformizado que havia sido alvejado com onze balaços... À sua volta aglomeraram-se vários soldados admirados com a resistência do organismo que não apresentava nenhum sinal de consciência...
Quantos anos tinha o rapaz? Todos se perguntavam... Não mais do que vinte anos... Só mesmo a juventude para oferecer tanta resistência à morte... Um tipo mais velho e fraco não teria como suportar tantos ferimentos.
Os soldados pareciam aguardar ansiosamente o instante derradeiro do moribundo... O enfermeiro já havia sentenciado que o desconhecido não sobreviveria... Ministravam-lhe glicose... Os músculos do rapaz pareciam dar sinais de sobrevida... Seu coração trabalhava num ritmo tão intenso que podia ser escutado pelos homens de olhos arregalados e voltados para a criatura que definhava.
Ninguém o conhecia...
E ninguém sabia ao certo se lutava por Honduras ou por El Salvador...
Quem eram seus pais? Pouco importava...
Um último suspiro o levara ao “Pai Eterno”.
Aos poucos todos deixaram o local.

(...)

Os jornalistas subiram no caminhão reservado a eles para prosseguir viagem rumo aos confrontos que todos esperavam.
Incontáveis curvas formatam a estrada que corta a floresta. Depois de passarem pelo povoado de San Francisco ouviram o barulho das “guerras de verdade”. Metralhadoras, granadas, tiros de fuzis... Os repórteres puderam notar correria de soldados.
Então o caminhão freou bruscamente porque bem à sua frente um artefato provocou a abertura de cratera imensa.
Na sequência outras duas grandes explosões provocaram a fuga desesperada dos jornalistas... Cada um seguiu para o lado que parecia mais conveniente... O barulho era intenso, o perigo de serem atingidos por uma bala era real. Eles as sentiam sibilando bem próximo às suas cabeças.
Kapuscinski conta que correu o mais que pôde, e que notou o cameraman da televisão francesa desesperado a procurar sua câmera... Alguém gritou para que ele se abaixasse para não ser atingido por estilhaços das granadas... O tipo simulou e atirou-se contra o chão dando a entender que estava morto... Parece que isso o salvou.
(...)
O polonês não entra em maiores detalhes porque passou a explicar o que se sucedeu a ele próprio...
Correu feito louco tentando se afastar ao máximo da área. Mas tudo indica que não foi muito longe porque novos disparos ocorreram, ele caiu e decidiu permanecer colado ao chão com os olhos bem fechados.
Depois de algum tempo, ainda deitado, observou trilhas de formigas que seguiam em várias direções. Decidiu contemplá-las por algum tempo até que tivesse condições de tomar uma decisão.
Passados alguns minutos, sem deixar a sua posição, ele quis observar o entorno e viu que à sua frente estava um soldado também a olhá-lo fixamente.
Leia: A Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas