Kapuscinski destaca dois atendimentos dispensados pelos enfermeiros daquele remoto e precário campo no meio da mata de Santa Rosa...
(...)
O primeiro deles foi a um camponês salvadorenho que estava ferido com um
balaço no joelho. Um caminhão do exército hondurenho o trouxera... Certamente
os militares pretendiam interrogá-lo, mas era necessário extrair o projétil
antes que algo mais grave se sucedesse com o prisioneiro.
O tipo estava completamente
arrasado, sem camisa e descalço... Sangrava muito... Deitado sobre a relva, ele
esboçou um gemido, mas foi silenciado pelo enfermeiro que fazia as “cirurgias”.
O enfermeiro enfiou os dedos na ferida aberta e puxou
a bala... Despejaram iodo no local e ajeitaram uma bandagem. O camponês não
conseguia caminhar, mas forçaram-no a seguir o mais rápido que podia para cima
do caminhão... Alguns jornalistas tentaram ajudá-lo, porém foram impedidos
pelos soldados.
Com muita dificuldade, atirou-se sobre a carroceria do veículo.
Resignado, o homem sabia que nada podia esperar do futuro. Completamente
entregue aos algozes, sussurrou que “gostaria de uma tragada”... Os jornalistas
atiraram-lhe todos os cigarros que tinham... Fizeram isso sem que os soldados
percebessem.
O caminhão partiu levando o desgraçado camponês... Por
mais contraditório que possa parecer, ele parecia se sentir feliz por causa dos
cigarros.
(...)
O segundo caso foi o atendimento a um jovem uniformizado que havia sido
alvejado com onze balaços... À sua volta aglomeraram-se vários soldados
admirados com a resistência do organismo que não apresentava nenhum sinal de
consciência...
Quantos anos tinha o rapaz? Todos se perguntavam... Não mais do que vinte
anos... Só mesmo a juventude para oferecer tanta resistência à morte... Um tipo
mais velho e fraco não teria como suportar tantos ferimentos.
Os soldados pareciam aguardar ansiosamente o instante derradeiro do
moribundo... O enfermeiro já havia sentenciado que o desconhecido não
sobreviveria... Ministravam-lhe glicose... Os músculos do rapaz pareciam dar
sinais de sobrevida... Seu coração trabalhava num ritmo tão intenso que podia
ser escutado pelos homens de olhos arregalados e voltados para a criatura que
definhava.
Ninguém o conhecia...
E ninguém sabia ao certo se
lutava por Honduras ou por El Salvador...
Quem eram seus pais? Pouco
importava...
Um último suspiro o
levara ao “Pai Eterno”.
Aos poucos todos deixaram o local.
(...)
Os jornalistas subiram no
caminhão reservado a eles para prosseguir viagem rumo aos confrontos que todos
esperavam.
Incontáveis curvas formatam a estrada que corta a
floresta. Depois de passarem pelo povoado de San Francisco ouviram o barulho
das “guerras de verdade”. Metralhadoras, granadas, tiros de fuzis... Os
repórteres puderam notar correria de soldados.
Então o caminhão freou
bruscamente porque bem à sua frente um artefato provocou a abertura de cratera
imensa.
Na sequência outras duas grandes explosões provocaram a fuga desesperada
dos jornalistas... Cada um seguiu para o lado que parecia mais conveniente... O
barulho era intenso, o perigo de serem atingidos por uma bala era real. Eles as
sentiam sibilando bem próximo às suas cabeças.
Kapuscinski conta que correu o mais que pôde, e que
notou o cameraman da televisão francesa desesperado a procurar sua câmera...
Alguém gritou para que ele se abaixasse para não ser atingido por estilhaços
das granadas... O tipo simulou e atirou-se contra o chão dando a entender que
estava morto... Parece que isso o salvou.
(...)
O polonês não entra em maiores detalhes porque passou a explicar o que
se sucedeu a ele próprio...
Correu feito louco tentando se afastar ao máximo da área. Mas tudo
indica que não foi muito longe porque novos disparos ocorreram, ele caiu e
decidiu permanecer colado ao chão com os olhos bem fechados.
Depois de algum tempo, ainda deitado, observou trilhas de formigas que
seguiam em várias direções. Decidiu contemplá-las por algum tempo até que tivesse
condições de tomar uma decisão.
Passados alguns minutos, sem deixar a sua
posição, ele quis observar o entorno e viu que à sua frente estava um soldado
também a olhá-lo fixamente.
Leia: A
Guerra do Futebol. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto