Chegaram ao “Ange-Noir”...
O ambiente era o de “porão quente e úmido”... Anne comparou a atmosfera às das matas centro-americanas. Além disso, o lugar era todo ruído e fumaça.
É claro que aquilo não combinava com as duas, já que a boate estava repleta de jovens que trajavam despojados macacões.
Paule escolheu uma mesa próxima ao local onde uma banda se apresentava... Será que ela não percebia que estavam desambientadas? Anne refletia sobre isso ao notar que se colocavam à vista de todos.
(...)
A conversa se iniciou com as justificativas de Paule a respeito de sua
decisão de não mais cantar... Disse que a atividade depende muito mais de
terceiros que do artista...
Anne entendeu que, na verdade, a moça carecia de
várias qualidades necessárias para cativar o público e a crítica
especializada... Então apenas balançou a cabeça e perguntou se ela pretendia
escrever eventos da própria biografia relatando-os de modo descarado ou se os
romancearia...
Paule respondeu que estava em busca de um formato ideal... E emendou
dizendo que nisso Henri havia falhado, já que “seus romances são mortalmente
clássicos”.
Ela havia pedido dois uísques duplos... Com um único trago esvaziou o
seu copo. Logo depois sentenciou que a crise que sofrera tinha sido muito dura,
mas “ter se achado” era algo que lhe trazia imensa alegria.
Anne bem que gostaria de manifestar o seu contentamento por vê-la feliz,
mas não conseguia... De repente considerou que a amiga ficara mais estranha do
que na época em que havia sofrido os transtornos psiquiátricos mais graves.
(...)
Conseguiu dizer apenas que entendia que Paule havia enfrentado “momentos
singulares”.
Paule respondeu que sim...
E mais que isso, afirmou que houve dias em que quase morreu de rir porque tudo
lhe parecia cômico... E que também viveu horrores só controlados com a
camisa-de-força.
Até eletrochoques foram
aplicados durante o tratamento... Mas Paule parecia a tudo entender, já que
sabia que estava vivendo um estado de esquisitice intenso... Ela superou os
medos das sessões... É claro que se lembra de sonhos medonhos, e num deles
atiravam-lhe um balaço na têmpora... Isso lhe provocava muita dor...
Mardrus explicou-lhe
que esse sonho se relacionava a alguma recordação.
Anne quis saber a opinião de Paule sobre o doutor... Ela respondeu que
Mardrus era “um grande homem simples” que conseguiu descobrir “a chave de toda
essa história”...
O tratamento não tinha se
encerrado, mas ela garantiu que “o essencial foi feito”... De repente, perguntou
se Anne ouvira falar de seu irmão... Obviamente aquilo era uma surpresa para
Anne que, com espanto, exclamou que ela nunca lhe contara a respeito.
Paule explicou que a criança morreu quando contava
pouco mais de um ano. Ela tinha apenas quatro anos de idade, mas o episódio imprimiu
trauma que perdurou por toda a sua existência. E isso explica por que seu amor
por Henri só podia se tornar patológico.
Anne ouviu com atenção e emendou que Henri era dois ou três anos mais
jovem do que ela... Paule concordou e, dando a entender que estava de acordo
com o diagnóstico de Mardrus, disse que também isso explica o seu masoquismo e “ciúme
infantil” em relação a Henri...
A morte do irmão provocara-lhe, inconscientemente, um
sentimento de culpa.
Especificamente sobre
Henri, Paule admitiu que se fizera sua escrava... Assim, deixou de se importar
com qualquer possibilidade de realização pessoal para que ele triunfasse...
Então Paule havia se tornado extremamente dependente de Henri... E a
explicação para isso estava em sua necessidade de obter uma “salvação”...
Quer dizer, ela precisava ser absolvida pelo
irmão morto... E só o conseguiria (e isso estava escondido em seu inconsciente)
submetendo-se completamente a Henri, seu “herói” e “santo”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/07/os-mandarins-de-simone-de-beauvoir.html
Leia: Os
Mandarins. Editora Nova Fronteira.
Um abraço,
Prof.Gilberto