quarta-feira, 7 de setembro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – em vez de lidar com Maria da Paz, o telefonema foi para o colega de Matemática; conversando sobre o episódio “paternalista” e a desproporcional reação de rejeição; sair da depressão para “mudar de figura”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-o.html antes de ler esta postagem:

Já que a ex-mulher de Tertuliano não possui nenhum papel relevante na narrativa de “O Homem Duplicado” sequer tem o nome revelado nos capítulos que seguem.
Ela dissera-lhe que só mesmo por covardia manteria o casamento... Garantiu-lhe que este não era o seu caso... Talvez, de forma indireta, a adjetivação fosse a ele dirigida.
Até este momento o leitor também não tem certeza da relevância de Maria da Paz para a louca história de Tertuliano...
No entanto temos o seu nome...
Ele sabia “de cabeça” o número do telefone, mas não foi para ela que ligou.
Covardia?
Pouco importa... Interessa saber que a sofredora Maria da Paz começaria a entender que a relação com Tertuliano não tinha futuro...
Ela logo compreenderia que a dificuldade para ter o namorado frente-a-frente só podia ser sinal de que ele preparava-se para tirá-la de vez de sua vida.
(...)
Teve certo trabalho para encontrar o número na agenda, mas em pouco tempo Tertuliano viu-se telefonando para a casa do colega de Matemática...
A esposa do outro atendeu sem conseguir disfarçar a irritação pelo inusitado da hora... Ainda era muito cedo! A mulher quis saber quem ligava, e pronunciou as palavras num “subtom” que só os mais entendidos “teóricos do som” ou compositores da música mais pura reconheceriam a rejeição subjacente.
Tertuliano pediu desculpas... Anunciou-se e perguntou se podia falar com o colega... Sequer terminou de falar e a outra disse que chamaria o marido naquele mesmo instante.
(...)
Logo estava a dialogar com o de Matemática... Desejou-lhe bom dia e se desculpou por não esperar para falar-lhe mais tarde na escola... Mentiu ao dizer que só naquele instante havia ouvido a gravação na secretária eletrônica, e que quis “esclarecer o equívoco o mais rapidamente possível a fim de não deixar nascer mal-entendidos que depois se agravam”.
O colega respondeu que não havia nenhum mal entendido e que tinha a consciência tão tranquila quanto à de um bebê inocente. Mais uma vez Tertuliano se desculpou... Esclareceu que ele próprio era a razão da confusão que o atormentava... Acrescentou que os nervos saíam-lhe do lugar por causa do marasmo... Por causa da depressão ficava a “imaginar coisas”.
O de Matemática quis saber que coisas o colega imaginava... Tertuliano não soube responder e deu exemplos esdrúxulos sobre achar que não era considerado pelos outros do modo como achava que merecia... Disse que (eventualmente) não tinha certeza exata sobre o que ele era... Não conseguia se explicar... Sabia quem era, mas não tinha certeza sobre sua essência.
O colega respondeu que entendia “mais ou menos”... Disse que no fim das contas aquilo não explicava a “reação” de Tertuliano (estaria se referindo à ocasião em que conversaram no corredor da escola? Talvez quisesse apenas ajudar o outro a superar suas angústias existenciais.).
Tertuliano percebeu que a conversa podia levá-lo a novo constrangimento... Comentou que também não sabia explicar as próprias reações... Disse que talvez tivesse entendido que a postura do colega (não falou sobre ele ter colocado o braço sobre seu ombro) parecera-lhe paternalista... O outro pareceu não concordar com o conceito, mas quis saber em que momento o havia tratado de modo paternalista.
Tertuliano lembrou-o a respeito do momento em que se dirigiam para as salas de aulas, então falou sobre a “mão no ombro” ressaltando que o gesto só podia ser indicativo de amizade... Todavia ressaltou que o entendera como agressão.
(...)
 Evidentemente o de Matemática se recordava do episódio... Segundo Tertuliano, nem poderia ser diferente, já que ele mesmo entendia que reagira mal... Acrescentou que, se tivesse um “gerador elétrico” em seu estômago, certamente o colega cairia fulminado no mesmo instante.
Sem dúvida aquela postura só podia ser entendida como rejeição... O colega de Matemática destacou isso, mas Tertuliano não admitiu que assim o fosse. Deu como exemplo o caracol que se encolhe ao ser tocado por um dedo...
O professor de Matemática argumentou que o “encolhimento” do caracol talvez fosse resultado de rejeição... Emendou que Tertuliano não tinha “nada de caracol”.
Esse curioso juízo levou Tertuliano a afirmar que às vezes pensava que tinha muito em comum com o caracol.
O colega respondeu que ele precisava sair da depressão... Só assim veria que tudo à sua volta mudaria de figura.
Essa frase chamou a atenção de Tertuliano, que deixou escapar que era curioso ouvi-la... O de Matemática não entendeu o que havia de extraordinário em “mudar de figura”.
Tertuliano explicou que ainda era cedo para entrar em detalhes... O colega respondeu que aguardaria o “momento do outro” para que pudesse entendê-lo melhor.
Em seus pensamentos Tertuliano sabia que, se assim era, o tipo permaneceria toda a vida na expectativa.
Obviamente não desejava compartilhar o seu segredo com ninguém.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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