Já que a ex-mulher de Tertuliano não possui nenhum papel relevante na narrativa de “O Homem Duplicado” sequer tem o nome revelado nos capítulos que seguem.
Ela dissera-lhe que só mesmo por covardia manteria o casamento... Garantiu-lhe que este não era o seu caso... Talvez, de forma indireta, a adjetivação fosse a ele dirigida.
Até este momento o leitor também não tem certeza da relevância de Maria da Paz para a louca história de Tertuliano...
No entanto temos o seu nome...
Ele sabia “de cabeça” o número do telefone, mas não foi para ela que ligou.
Covardia?
Pouco importa... Interessa saber que a sofredora Maria da Paz começaria a entender que a relação com Tertuliano não tinha futuro...
Ela logo compreenderia que a dificuldade para ter o namorado frente-a-frente só podia ser sinal de que ele preparava-se para tirá-la de vez de sua vida.
(...)
Teve certo trabalho para encontrar o número na agenda, mas em pouco
tempo Tertuliano viu-se telefonando para a casa do colega de Matemática...
A esposa do outro atendeu sem conseguir disfarçar a irritação pelo
inusitado da hora... Ainda era muito cedo! A mulher quis saber quem ligava, e
pronunciou as palavras num “subtom” que só os mais entendidos “teóricos do som”
ou compositores da música mais pura reconheceriam a rejeição subjacente.
Tertuliano pediu
desculpas... Anunciou-se e perguntou se podia falar com o colega... Sequer
terminou de falar e a outra disse que chamaria o marido naquele mesmo instante.
(...)
Logo estava a dialogar com
o de Matemática... Desejou-lhe bom dia e se desculpou por não esperar para
falar-lhe mais tarde na escola... Mentiu ao dizer que só naquele instante havia
ouvido a gravação na secretária eletrônica, e que quis “esclarecer o equívoco o
mais rapidamente possível a fim de não deixar nascer mal-entendidos que depois
se agravam”.
O colega respondeu
que não havia nenhum mal entendido e que tinha a consciência tão tranquila
quanto à de um bebê inocente. Mais uma vez Tertuliano se desculpou...
Esclareceu que ele próprio era a razão da confusão que o atormentava... Acrescentou
que os nervos saíam-lhe do lugar por causa do marasmo... Por causa da depressão
ficava a “imaginar coisas”.
O de Matemática quis saber que coisas o colega imaginava... Tertuliano
não soube responder e deu exemplos esdrúxulos sobre achar que não era
considerado pelos outros do modo como achava que merecia... Disse que (eventualmente)
não tinha certeza exata sobre o que ele era... Não conseguia se explicar...
Sabia quem era, mas não tinha certeza sobre sua essência.
O colega respondeu que
entendia “mais ou menos”... Disse que no fim das contas aquilo não explicava a
“reação” de Tertuliano (estaria se referindo à ocasião em que conversaram no
corredor da escola? Talvez quisesse apenas ajudar o outro a superar suas
angústias existenciais.).
Tertuliano percebeu que a conversa podia levá-lo a
novo constrangimento... Comentou que também não sabia explicar as próprias reações...
Disse que talvez tivesse entendido que a postura do colega (não falou sobre ele
ter colocado o braço sobre seu ombro) parecera-lhe paternalista... O outro
pareceu não concordar com o conceito, mas quis saber em que momento o havia
tratado de modo paternalista.
Tertuliano lembrou-o a respeito do momento em que se dirigiam para as
salas de aulas, então falou sobre a “mão no ombro” ressaltando que o gesto só
podia ser indicativo de amizade... Todavia ressaltou que o entendera como
agressão.
(...)
Evidentemente o de Matemática se recordava do
episódio... Segundo Tertuliano, nem poderia ser diferente, já que ele mesmo
entendia que reagira mal... Acrescentou que, se tivesse um “gerador elétrico”
em seu estômago, certamente o colega cairia fulminado no mesmo instante.
Sem dúvida aquela postura só podia ser entendida como rejeição... O
colega de Matemática destacou isso, mas Tertuliano não admitiu que assim o
fosse. Deu como exemplo o caracol que se encolhe ao ser tocado por um dedo...
O professor de Matemática argumentou que o “encolhimento” do caracol
talvez fosse resultado de rejeição... Emendou que Tertuliano não tinha “nada de
caracol”.
Esse curioso juízo levou Tertuliano a afirmar que às vezes pensava que
tinha muito em comum com o caracol.
O colega respondeu que ele precisava sair da depressão... Só assim veria
que tudo à sua volta mudaria de figura.
Essa frase chamou a atenção
de Tertuliano, que deixou escapar que era curioso ouvi-la... O de Matemática
não entendeu o que havia de extraordinário em “mudar de figura”.
Tertuliano explicou que
ainda era cedo para entrar em detalhes... O colega respondeu que aguardaria o “momento
do outro” para que pudesse entendê-lo melhor.
Em seus pensamentos
Tertuliano sabia que, se assim era, o tipo permaneceria toda a vida na
expectativa.
Obviamente não desejava compartilhar o seu
segredo com ninguém.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto