O diretor sentou-se à mesa com os seus três professores...
Solicitou a Tertuliano Máximo Afonso que repetisse aos colegas o que havia lhe dito na diretoria... O rapaz não esperava a iniciativa do chefe e chegou a perguntar-lhe qual era o assunto.
O diretor confirmou que gostaria de ouvi-lo falar a respeito de sua revolucionária concepção do ensino de História. Nesse mesmo instante, a professora de Inglês esboçou um começo de sorriso, mas o interrompeu tão logo notou o olhar sério de Tertuliano.
Depois de certo silêncio ele disse que, como se tratava de uma “concepção”, não havia nada de original e tampouco era merecedor de elogios por defendê-la. O chefe o corrigiu ao garantir que o que o havia empolgado era exatamente o seu discurso.
(...)
Neste momento Tertuliano concentrou-se e levou o seu olhar para longe
dali... Sentiu-se como se estivesse saindo do refeitório... Depois subiu a
escadaria e “passou” pela porta do gabinete do diretor... Era como se tivesse
se transportado para lá e pudesse fixar os olhos no ambiente.
“Retornou” com a certeza de que vira uma
“entidade” que podia ser seu “outro eu” (talvez perdido no espaço e no tempo).
Para si mesmo, Tertuliano repetia que “era ele!”... O
medo o dominou, mas não podia permitir que os colegas o notasse.
(...)
Olhos fixos no colega de Matemática, Tertuliano remontou as ideias e
falou metaforicamente a respeito da “navegação pelo rio do Tempo acima”...
Deixou de lado a expressão “rio da História”... Fez isso para impactar e dar
consistência à teoria.
A professora de Inglês era toda seriedade... Já era uma senhora e
seguramente contava os sessenta anos de idade... Tratava-se de uma avó, e não
era do seu feitio andar por aí a fazer pilhéria e distribuir risos ao notar as
mancadas dos outros. Em relação à mesmice pedagógica pronunciada pelo professor
de História procurava manter postura solidária aos demais colegas, ou seja, a
cumplicidade dos risinhos.
Depois que Tertuliano fez o favor de falar sobre o que o diretor
gostaria, viu-se que a professora de Inglês admitiu que o conteúdo da “concepção
de ensino” era interessante também para outras áreas... Por que não aplicá-la
ao ensino das línguas? Disse que poderia ensinar de modo a levar os estudantes
a navegarem à “nascente do rio”... Foi com certa empolgação que emendou que dessa
forma talvez todos percebessem “o que é isto de falar”.
O diretor respondeu que havia especialistas que lidavam com o tema...
Podemos dizer com certeza
que esse não era o caso da velha professora, que ensinava Inglês “como se não
existisse nada antes”.
O de Matemática deu sua
opinião usando de ironia... Disse que com a Aritmética o método não daria
resultado... E exemplificou que “o número dez é teimosamente invariável, nem
teve necessidade de passar pelo nove nem o devora a ambição de tornar-se onze”.
(...)
O assunto foi encerrado
assim que a comida chegou à mesa.
Tertuliano voltou a
pensar no “plasma invisível” que devia ter se manifestado na sala do diretor...
Em silêncio cogitava que talvez não tivesse nada a ver com o “caixa do banco”
ou o “empregado do hotel”... O mais provável era ele mesmo estar perdendo o
juízo com aquela insistência toda em descobrir a identidade de sua “cópia fiel”...
Após o almoço a aula que ministrou tratou de temáticas relacionadas aos
mesopotâmicos (semitas amorreus; Hamurabi e o código; o deus Marduc...). Nada
disso fazia parte do programa... Tanto falou durante todo o tempo que os
alunos, inclusive aquele que dissera que o professor “vinha com a mosca”,
sentiram-se maçados.
Alguns sugeriram que o
professor devia estar com um dos parafusos da cabeça espanado... Já os alunos
da turma seguinte eram mais novos e pareceram empolgados com as palavras sobre
o cinema na didática do estudo da História.
Ao final do dia letivo, também Tertuliano
avaliou-o como negativo... Um dia “para ser esquecido”... Não levou em
consideração o fato de ter conquistado o diretor e a professora de Inglês para
as suas ideias reformadoras da Pedagogia... Podia ao menos pensar que a colega
seria “uma a menos” a rir-se de suas palavras nas próximas reuniões.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_12.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto