O apartamento estava muito bem arrumado... Era sempre assim... Os dias em que a vizinha do andar de cima aparecia para a faxina se tornavam especiais porque quarto, banheiro, sala,
cozinha e sala ficavam na mais perfeita ordem... Aromas de limpeza intimidavam o morador, que se sentia culpado por logo voltar a sujar e a desorganizar tudo. Pelo menos nos dias de limpeza, Tertuliano evitava funcionar o fogão e outros utensílios... Por isso comia num restaurante das proximidades.
Sobre a mesinha de centro da sala empilhou os trinta e seis filmes... Lembrou-se dos três que estavam na gaveta da escrivaninha e avaliou a grandiosidade da tarefa que tinha pela frente.
Acaso poderia desejar tal empreitada ao pior dos inimigos? Nem isso podia fazer, pois desconhecia inimigos... Assumiu o método de ordenar as fitas de acordo com o ano de produção, da mais antiga a mais recente. A grande quantidade de caixas o impediu de enfileirá-las sobre a escrivaninha, então as ajeitou no chão, junto à estante.
Dessa forma, o filme “mais à esquerda” (o mais antigo) era o “Um Homem como Qualquer Outro”, já o mais recente chamava-se “A Deusa do Palco”... Se houvesse coerência entre essa disposição e o modo de Tertuliano pensar a pesquisa e ensino de História, a organização dos filmes seria invertida... Mas isso é outro assunto. Teríamos de tratar da tendência que temos a guiar-nos pelas orientações mais tradicionais, ainda que façamos apologias da subversão da metodologia.
(...)
Isso de “comer fora” nos dias em que o apartamento passava por limpeza possibilitava
ao professor variar o cardápio do jantar...
Então, como da última vez havia se alimentado de
carne, dessa feita saiu com o firme propósito de comer peixe.
Mas não foi bem assim. O restaurante oferecia tamboril, uma espécie que
o professor não apreciava por diversos motivos...
Saramago apresenta
definições coletadas de uma enciclopédia por seu personagem: “bentônico animal
marinho que vive em fundos arenosos ou lodosos, desde o litoral aos mil metros
de profundidade, um bicho de enorme cabeçorra, achatada e armada de fortíssimos
dentes, com dois metros de comprimento e mais de quarenta quilos de peso”...
Não havia sequer uma característica do tamboril que pudesse ser
apreciada por Tertuliano e seu paladar. Por muito tempo ele rejeitara os nacos
da iguaria sem conhecer as definições coletadas no livro... No entanto ao
retornar para casa, e antes que se pusesse a assistir aos filmes, precisou
resolver a curiosidade no livro referido anteriormente.
(...)
Na sequência de seu texto, Saramago trata da relação que as pessoas têm
com as palavras... Algumas delas incorporadas ao nosso repertório desde a mais
tenra idade... Para muitas delas nem temos o significado, e mesmo assim as
vamos usando (mais ou menos satisfatoriamente) no decorrer de nossas
existências.
Mas nunca é tarde para
conferirmos a significação e o sentido das palavras... O próprio Tertuliano
poderá responder de modo mais categórico aos garçons que lhe oferecerem
tamboril para a refeição...
O autor parece se divertir
com a possibilidade de uma de suas negativas futuras: “Tamboril? O quê? Esse
horrendo bentônico que vive em fundos arenosos e lodosos? Nem pensar!”.
(...)
É verdade. O
professor esteve a pensar a respeito dessas situações relativas ao tamboril, a
riqueza das palavras, suas significações e sentidos... E também sobre uma
resposta carregada de justificativas para rejeitar o prato que sempre lhe
causou repugnância.
Antes que se dispusesse a colocar “Um Homem como Qualquer Outro” no
aparelho de vídeo, Tertuliano não fizera nada de muito relevante... Saramago dá
a entender que andou a “preencher linhas” com o tamboril e as informações
enciclopédicas também para ilustrar a inoperância de seu personagem.
(...)
“Um Homem como Qualquer
Outro” rodou por uma hora sem que o ator secundário aparecesse... O professor
deduziu que ele não participara da produção, então fez a fita avançar até o
final... Leu os nomes que apareceram nos créditos.
Depois excluiu aqueles que se repetiam em sua
lista.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-vida.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto